terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras


CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil que deixou de apostar no futuro. Desesperançados, muitos pesquisadores já abandonam o país…

 

Por Roberto Amaral

 


Robert Oppenheimer é reconhecidamente um dos mais renomados físicos do século passado. Prêmio Enrico Fermi  de 1963, dirigiu o Projeto Manhattan para o desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, no Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México. No auge de seu prestígio internacional esteve em nosso país, e no Rio de Janeiro, no dia 23 de julho, pronunciou uma conferência da qual Renato Archer, futuro ministro da ciência e tecnologia (1985-1987) colheu a seguinte afirmação: “Se eu tivesse visitado o Brasil há três anos e me fosse dado percorrer o mesmo itinerário [centros científicos do Rio, São Paulo e Minas Gerais, em cinco semanas] teria vindo aos senhores para lhes implorar que criassem um Conselho Nacional de Pesquisas idêntico ao que ora existe” (cf. FILHO, Alvaro Rocha. Renato Archer – Depoimento. Contraponto, 2006, p. 64).

Pois destruir essa instituição, o hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, vinculado ao MCTI,  é o projeto do governo do capitão, a que se associa a maioria do pior Congresso que nosso país já teve em toda sua tumultuada vida republicana! Em ofício à Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso Nacional, o especulador Paulo Guedes decidiu, com a aquiescência de todos os partidos (menos o PSOL, registre-se), cortar os recursos antes carreados à ciência e tecnologia, no montante de R$ 690,00 milhões, para meros R$ 55,2 milhões destinados a pesquisas com radiofármacos (e insuficientes para esse fim). Trata-se de sentença de morte que pesa sobre os destinos do país, condenando-nos a atraso irremediável.

O macabro objetivo do bolsonarismo é destruir o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, construído numa saga que já completa 70 anos.  A razia opera mediante o garrote financeiro. Enquanto os países da OCDE investem, em média, mais de 2% de seu orçamento em ciência e tecnologia, a Coreia do Sul e Israel mais de 4%, o Brasil, em 2020, investiu apenas 1% e ainda reduziu drasticamente os recursos destinados a 2021! O governo que desconstitui o ensino superior também investe contra a base da escolaridade. Segundo a mesma OCDE, entre 40 países avaliados, o Brasil é aquele em que o piso do professor do ensino fundamental é o mais baixo.

Em 2020 o MCTI (valores corrigidos) recebeu menos recursos do que em 2009, e o orçamento para 2021, tanto quanto o do MEC, já eram inferiores aos dos anos anteriores.

Para onde vai a “economia”?

Os  recursos desviados do CNPq serão distribuídos pelo governo através da artimanha “emendas do relator do orçamento”, excrescência da legislação orçamentária que permite irrigar as bases eleitorais dos apaniguados sem obedecer ao princípio constitucional da transparência.

Como combater as desigualdades em país que mais e mais aprofunda a concentração de renda, se não investimos em educação? Na CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação do Ministério da Educação responsável pela consolidação do sistema de pós-graduação no Brasil, os recursos caíram de R$ 2,8 milhões em 2020, para R$1,9 milhão este ano. Quando no mundo faltam semicondutores, afetando até a produção industrial brasileira, o capitão está liquidando o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada SA – CEITEC, a maior empresa produtora de semicondutores do país, que forma mão de obra, promove pesquisa e desenvolve produtos para o mercado nacional.  Como transitar da condição de país economicamente atrasado e politicamente dependente na periferia do capitalismo, como superar o estágio de tradicional exportador de matérias-primas para a de exportador de produtos com valor agregado, como industrializar-se e competir no mercado internacional, como, enfim, desenvolver-se, quando o sistema nacional de ciência e tecnologia é desmontado?

O governo,  que já devastou nosso presente, trata agora de nos negar a chance de futuro, uma faina à qual se dedica desde o primeiro dia em que, com seus engalanados bem comissionados se aboletou em Brasília, perseguindo a inteligência brasileira, cortando recursos fundamentais para o ensino, a pesquisa e o desenvolvimento científico.

O Brasil, que na colônia foi campeão nas exportações de açúcar e café e outros produtos tropicais demandados pela Europa, e hoje é orgulhoso exportador de grãos e minérios, no regime que nos atanaza passa a exportar cérebros para os países ricos e desenvolvidos. Desesperançados, jovens pós-graduados, formados em nossas universidades, são obrigados a migrar, na busca de condições favoráveis para a continuidade de seus estudos e o desenvolvimento de suas pesquisas. O bolsonarismo aprofunda o atraso científico-tecnológico, e o projeta para muitas décadas adiante.

Os gastos com cartão de crédito corporativo (pagos pela União, isto é, com nossos impostos) já somam R$ 50 milhões na gestão Bolsonaro. O patrimônio da Dreadnoughts International Group, offshore criada em 2014 nas Ilhas Virgens Britânicas,  pelo ministro Paulo Guedes, é de R$ 52 milhões a ponta de um iceberg – que o especulador admite ter lá depositada em seu nome. Pois R$ 55,2 milhões é tudo que o CNPq receberá para pesquisa com radiofármacos (remédios destinados ao combate ao câncer e também usados para diagnóstico por imagem), cuja produção chegou a parar em setembro, por falta de recursos,  consequência do corte de 92% das verbas destinadas ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-FNDCT, desviadas do MCT com a criminosa omissão do astronauta, a quem falta a necessária dose de amor-próprio para pedir demissão.

Mas, para pedir demissão, o ministro precisaria, antes, ser ético. Como militar candidato a astronauta, passou sete anos em doce e bem remunerada vilegiatura nos EUA, e, para desfrutar de algumas horas no espaço, obra sem serventia para o país, custou ao erário a bagatela de R$ 37 milhões, parte suprida pelo ministério que ainda ocupa. Quando de seu regresso, logo foi mandado para a reserva bem remunerada, montou empresa para gerenciar palestras – às quais comparecia com o macacão da NASA, até ser repreendido pelos seus chefes na FAB. Resolveu, então, vender colchões e travesseiros, e assim terminou a carreira de garoto-propaganda.

O CNPq, engenho pensado pela inteligência de Álvaro Alberto, seu primeiro presidente, vem desde 1951 fomentando a formação de pesquisadores brasileiros em todas as áreas do conhecimento. O que hoje podemos chamar de  ciência brasileira é fruto do seu exercício na formação científica, na pesquisa básica e na pesquisa aplicada, no desenvolvimento tanto das ciências sociais como exatas,  e no desenvolvimento da inovação tecnológica nas empresas. Por isso foi sempre respeitado pelos sucessivos governos, da mais variada cepa, inclusive no mandarinato militar. O primeiro a intentar esvaziá-lo é este que nos assola presentemente.

Valendo-me da experiência de ex-ministro de Ciência e Tecnologia, arrisco-me a afirmar que não há um só pesquisador brasileiro cuja carreira em algum momento não tenha contado com  apoio da instituição. As principais conquistas da ciência brasileira, lembra o professor Wanderley de Souza — como o desenvolvimento do setor agropecuário, a exploração de petróleo em águas profundas e no pré-sal, a utilização do etanol como combustível, os avanços na área nuclear, a produção de vacinas –, tiveram a participação do CNPq a quem ainda devemos o apoio  a instituições fundamentais para o desenvolvimento da ciência brasileira, como o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, o Museu Emílio Goeldi, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, instituições cujo desempenho não podem dizer respeito ao mundo de interesse de um reles especulador financeiro, como é o atual ministro da economia, de um presidente de república réprobo e de um ministro de ciência, tecnologia e inovações que desconhece o que sejam tais coisas. Além de um Congresso Nacional hegemonizado pelo centrão, o que há de mais espúrio na abastardada representação política brasileira.

É o indispensável CNPq que o bolsonarismo, com a inefável colaboração de um congresso vexaminoso, se dedica a destruir: em 2013 seu orçamento foi de cerca de R$ 3 bilhões. Em 2021 caiu para R$1 bilhão. Redução de recursos significa, por óbvio, redução do apoio a projetos e menor número de bolsas de estudos – cujos valores, por sinal, estão congelados há vários anos. No caso concreto inviabiliza, ainda,  a recuperação de parte da infraestrutura dos laboratórios e equipamentos, caríssimos, de alta especialização, perdidos com os cortes de verba que vêm atingindo a área desde principalmente 2015. País que não investe na formação de quadros superiores é sociedade que renunciou ao seu desenvolvimento, abdicou das esperanças de soberania, conformou-se com a pobreza e se alimenta de profunda desigualdade social. Este o país, em marcha à ré, que estamos condenados a herdar em janeiro de 2023, se antes não tivermos condições de nos livrar da satraparia governante. 


FONTE: OUTRAS PALAVRAS

 


domingo, 21 de novembro de 2021

A Consciência Negra é nossa!

 

Se temos o Dia da Consciência Negra, devemos agradecer a Zumbi e outros milhares que não se curvaram aos que insistiam em enxergar um paraíso racial. Negros e negras que fizeram de suas histórias as histórias do Brasil.


 Por Ynaê Lopes dos Santos, no DW


                                    Foto: Ricardo Borges/divulação


Existe um ditado que circula entre várias sociedades africanas que diz: “Até que os leões inventem as suas histórias, os caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça“. Gosto muito desse provérbio, pois ele conta de forma simples uma premissa que muitas vezes pode passar despercebida: a história não é uma via de mão única, uma reta que nos leva ao presente. A história é emaranhado, é trança, é trama e é tessitura. E são muitas as pontas que permitem a conexão com esse tempo que já passou.

Mas esse provérbio também fala sobre enunciado. Sobre quem conta as histórias e o poder que isso representa não apenas na construção do tempo presente, mas também nos projetos de futuro, nas escolhas do que e de quem devemos lembrar.

Hojé é dia 20 de novembro de 2021. Há 326 anos Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes quilombolas da história das Américas, era assassinado. Sua morte demorou muito mais tempo do que os senhores de engenho da capitania de Pernambuco imaginavam. Na realidade, o Quilombo de Palmares se transformou num grande pesadelo para os homens que viviam da exploração do trabalho de homens e mulheres escravizados, a maior parte deles africanos. Até mesmo o rei de Portugal enviou correspondências para Zumbi, na tentativa de dissuadi-lo de ser quem era. Zumbi não cedeu aos apelos reais. O mundo que ele estava construindo com seus companheiros era outro. Ele sabia muito bem disso, e pagou um preço alto por essa ousadia. Pagou com sua própria vida.

Sua história atravessou tempo e espaço. A tradição oral garantiu que gerações de escravizados e libertos soubessem de seus feitos. E até mesmo a história oficial, aquela escrita por homens que defendiam a escravidão e a escravização de homens como Zumbi, foi obrigada a se curvar ao líder palmarino, que, mesmo de maneira rápida, foi mencionado nos tratados e livros de história escritos no período colonial e ao longo do século 19.

Todavia, há uma grande diferença entre constar nos anais da história e se tornar herói nacional. Para ser herói não basta que um leão passe a contar as histórias. É necessária uma alcateia inteira. Sendo assim, a história por trás do 20 de Novembro não é apenas a brava e heroica história de Zumbi dos Palmares e de seus companheiros e companheiras de luta. O 20 de Novembro também é resultado da luta dos movimentos negros brasileiros na disputa por uma outra narrativa da história nacional. Uma narrativa que fez da figura de Zumbi não só um ícone, mas também um lembrete de tantas histórias e trajetórias que compunham a consciência negra – e que estavam submersas nesse oceano de racismo.

Há 50 anos, no dia 20 de novembro de 1971, no Rio Grande do Sul, um dos estados mais brancos do país, alguns cidadãos negros se reuniam no Clube Náutico Marcílio Dias, uma das poucas associações negras de Porto Alegre. O Brasil vivia os anos de chumbo, numa ditadura militar que fez da democracia racial seu projeto de nação, ao mesmo tempo que vigiava atentamente todas as organizações negras do país. Mesmo assim, aqueles homens e mulheres – como outros tantos negros e negras brasileiros da época – se reuniam para ler poemas e cantar músicas compostas por artistas negros, para debater e combater o racismo. Brotava ali, um importante verso dessa nova história.

A década de 1970 foi marcada pela ampliação dos movimentos negros em todo o Brasil e teve a criação do Movimento Negro Unificado (1978) como uma de suas grandes marcas. Essa movimentação realizada por e para negros questionava a ordem vigente e propunha uma outra forma de revisitar o passado brasileiro e, portanto, uma outra forma de ser brasileiro. O 13 de Maio da Princesa Isabel não poderia ser a marca da liberdade. Mesmo porque, outras liberdades já haviam sido lutadas. Zumbi era um dos maiores lembretes disso.

O que observamos a partir daí, foi uma ação conjunta e coordenada, com o objetivo de, literalmente, mudar a história do Brasil, e trazer o protagonismo negro para a centralidade da narrativa. Um processo que foi lento, que passou por tramitações jurídicas, que causou polêmicas e muitas críticas daqueles que insistiam em enxergar o Brasil como uma espécie de paraíso racial.

Então, se hoje temos e comemoramos o Dia da Consciência Negra no Brasil, devemos agradecer não só a Zumbi e seus companheiros palmarinos, mas também aos outros milhares de homens e mulheres negros e negras que não se curvaram aos caçadores e que fizeram de suas histórias as histórias do Brasil.


*Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagramhttps://www.instagram.com/nossos_passos_vem_de_longe/


 FONTE: https://www.geledes.org.br/a-consciencia-negra-e-nossa/


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Fiori: Dialética e liberdade em Paulo Freire

 

Num artigo escrito quando Freire preparava a Pedagogia do Oprimido, a exposição de seu método refinado. Pensar com o povo (e não para ele). Expor as ciladas da alienação. Acreditar na construção dialógica do sujeito e de sua consciência


Por  José Luis Fiori *


Imagem: Alice Vasconcellos


"En sociedades cuya dinâmica estructural conduce a la dominación de las conciencias, la “pedagogia dominante es la pedagogia de las clases dominantes”. Los métodos de opresión no pueden, contradictoriamente, servir a la liberación del oprimido. En esas sociedades, gobernadas por intereses de grupos, clases y nacionais dominantes, “la educación como prática de la libertad” postula necessariamente una “pedagogia del oprimido

Fiori, E. M., “Aprender a decir su palabra”1


“Dialética y Libertad” é o título de um “documento de trabalho” que escrevi em 1967, quando participei como “jovem aprendiz” de uma pesquisa – ao lado de Maria Edy Chonchol e Marcela Gajardo – liderada por Paulo Freire, sobre “o universo temático dos camponeses chilenos”, realizada no Instituto de Investigação e Capacitação em Reforma Agrária (ICIRA/FAO), sediado em Santiago do Chile. Essa pesquisa foi feita na mesma época em que Paulo Freire escreveu sua obra clássica, Pedagogia do Oprimido, (1967-1968) que ele tinha por hábito discutir – quase diariamente – com sua equipe de pesquisa e com outros colegas do próprio ICIRA.


Em 1973, este pequeno texto introdutório à nossa pesquisa, e que me foi encomendado pelo próprio Paulo Freire, foi incluído num livro publicado em Bilbao, Espanha, ao lado de dois artigos de P. Freire e E. M. Fiori. Meu texto foi escrito originalmente em espanhol, mas ao relê-lo agora, depois de 54 anos, decidi traduzir apenas uma parte e republicá-la livremente, não pelo seu valor intrínseco, mas como um documento de uma época que pode ser útil para os estudiosos da educação e da vida de Paulo Freire, e como uma forma de relembrar e homenagear Paulo, que foi para mim um mestre inesquecível, um humanista, e um amigo de toda vida, apesar das distâncias geográficas e a despeito da nossa diferença geracional. Os anos calejaram minhas ideias e minhas esperanças, mas jamais poderei esquecer o otimismo perene de Paulo, e uma lição que me deu logo quando nos conhecemos: “nunca tenha medo de suas próprias ideias, mesmo quando elas mudem através do tempo”.

Dialética e Liberdade

“Nenhuma ação humana pode ser compreendida fora do contexto histórico de suas relações sociais e culturais, e de suas determinações estruturais; relações dos homens com o mundo, e dos homens com os demais homens, através do mundo. Por isso, a ação humana é sempre interação, comunicação e transformação. Ela não existe sem um sujeito que a intencione, e sem um objeto que seja “intencionado”. Ela é “práxis” e, como tal, possui uma dimensão “finalista” que é definida e orientada por valores que se interconectam dinamicamente, e que se constituem no conteúdo essencial de toda a ação.

Apesar de sua imensa complexidade, é possível falar e classificar as ações humanas em pelo menos dois grandes tipos, segundo a posição hierárquica do ator: as “ações massificadoras ou dominadoras” e as “ações conscientizadoras ou libertadoras”. Nas primeiras, o homem é objeto do próprio homem, ocupando o lugar de “mediador instrumental” entre este e o mundo. Nas outras, os homens se constituem e constroem dialogicamente como sujeitos de um “mundo objeto”. Num caso, os conteúdos e finalidades são impostos por um homem sobre outro, e por um grupo sobre o outro. Já no segundo caso, os conteúdos e finalidades da ação são buscados e realizados de forma conjunta pelos dois “polos” envolvidos em toda e qualquer relação ou situação concreta.

A inspiração originária desta pesquisa sobre a “consciência camponesa”, e deste projeto mais amplo de ação pedagógica proposto por Paulo Freire, nasce do reconhecimento dessa dicotomia fundamental, mas não de um reconhecimento passivo – pelo contrário, de uma opção clara e definida pelos oprimidos. Um projeto de ação pedagógica transformadora que parte da investigação da realidade em movimento das pessoas envolvidas e que depois volta a essas pessoas tematizando e problematizando seus problemas e desafios mais cruciais. Por isso, nesta concepção pedagógica, investigação, tematização e problematização se sucedem e se articulam dialeticamente como momento de um mesmo processo de análise, síntese e superação. Uma ação cultural que parte, portanto, de uma pedagogia dialógica que começa na própria investigação do “universo temático” do povo. Depois segue com a tematização desde universo para voltar ao povo na forma de conteúdos problemáticos. Esse processo se reinicia e refunda continuamente, na medida em que o povo supera suas experiências no mundo, refletindo sobre elas e integrando-as em uma visão sempre mais compreensiva e crítica, e numa ação transformadora cada vez mais ampla e inclusiva. Reflexão e práxis, portanto, aparecem nesta pedagogia como polos que se envolvem e implicam mutuamente numa superação contínua.

Deste ponto de vista, a educação não é algo que se pensa e estrutura em um mundo vazio de meditações metafísicas. É uma ação e uma intervenção que não podem se dar fora das relações concretas dos homens através do seu mundo. E neste sentido, também, a ação pedagógica não pode escapar da dicotomia proposta no início deste texto. A pedagogia se situa no mundo das ações e relações humanas, e, nestes termos, ela ou é massificadora ou é libertadora, não podendo ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Ao postular uma educação que nasce do povo e define seus conteúdos e finalidades com o povo, Paulo Freire defende uma pedagogia “do povo”, e não “para o povo”. “Uma pedagogia em que o oprimido tenha condições de se descobrir e conquistar reflexivamente, como sujeito do seu próprio destino histórico” 2. Uma pedagogia que, ao investigar e tematizar o mundo junto com o povo, faz do mundo do povo um “contínuo retomar reflexivo de seus próprios caminhos de libertação” 3 . Uma pedagogia, em última instância, que sendo conscientizadora, se assume e se define plenamente como uma ação “desmassificante” e libertadora, e como uma pesquisa que se propõe ser dialética e política, na medida em que coloca a libertação como um objetivo ético e uma busca permanente.

A proposta básica da pesquisa de Paulo Freire é realizar uma investigação que seja pedagógica, e uma pedagogia que seja ao mesmo tempo investigativa. O processo educativo, segundo Freire, envolve a investigação e a transcende a um só tempo, mas na medida em que a investigação faz parte do processo educativo, ela também deve ser concebida e pensada dialeticamente. Por isso mesmo, a investigação não tenta jamais enclausurar a realidade em um espaço limitado do tempo; ao contrário, procura adequar seu método e suas técnicas ao movimento dinâmico da própria realidade. Propondo como objetivo captar historicamente uma sociedade que está em permanente movimento, envolve-se com o próprio movimento dessa sociedade, ao contrário da antropologia tradicional e da metodologia clássica da sociologia empírica. Sem aceitar jamais a “coisificação” dos homens e do seu mundo, ao propor a necessidade de fazer do próprio povo “pseudoinvestigado”, o verdadeiro sujeito é investigador do seu mundo e da sua forma de pensar este mundo. A investigação, ao captar e objetivar junto com a comunidade suas próprias situações e desafios existenciais estratégicos, permite que a própria comunidade objetive e critique sua própria situação neste mundo através do diálogo e do exercício da reflexão crítica.

Primeiro, se codificam certas situações existenciais que são depois projetadas e discutidas nos “círculos de investigação”. Depois, é o próprio pensar do povo exposto através dos diálogos que é recodificado na forma de “temas recorrentes” e cruciais que são reapresentados e propostos à discussão do grupo em novos e sucessivos “círculos de cultura”. E é desta forma, através de codificações existenciais e decodificações dialógicas, que avança a investigação, procurando inserir-se dinamicamente na realidade comunitária e histórica do grupo. Desta forma, os “círculos de investigação” e os “círculos de cultura” se seguem de forma contínua, constituindo-se no método pelo qual avançam em conjunto a investigação e a atividade pedagógica, codificando, decodificando e recodificando a vida da comunidade e do mundo “externo”, em conjunto com os pesquisadores. Desta forma, as distinções entre os dois tipos de “círculos”, impostas pela própria cronologia do processo investigativo e educativo, vão desaparecendo de forma progressiva, transformando os círculos de investigação e cultura numa só realidade, em um só “círculo”, no qual a investigação e a educação se fazem ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

Já os participantes dos “círculos de investigação”, ao discutirem suas situações existenciais, começam a distanciar-se e a criticar seu próprio pensamento e sua visão do seu próprio mundo, que vai sendo objetivado e questionado na sua forma de ser anterior ao início do processo investigativo-educativo. Assim os participantes, em conjunto, acabam objetivando sua própria maneira anterior de dizer o seu mundo, assumindo uma nova consciência de si mesmos e do mundo ao redor, sem ver nem conseguir dizer o que de fato estavam vivendo. Desta forma, a própria comunidade se assume como investigadora de si mesma, e esta nova atitude vai-se desenvolvendo cada vez mais nos “círculos de cultura”, onde a comunidade crítica e supera reflexivamente suas próprias condições imediatas, capacitando-se para transformar em conjunto o seu mundo real.

Paulo Freire diria que a comunidade emerge de sua “consciência ingênua”, assumindo cada vez mais a postura própria de uma “consciência crítica”. Isso seria uma reprodução, em escala menor, do próprio processo universal de constituição dialética da consciência, como uma consciência histórica movida pela pulsão existencial e histórica da liberdade. Portanto, a atividade de investigação já deve ser – em si mesma – interativa e transformadora, fazendo dos homens “investigados” sujeitos de sua própria superação e realização. E é por isso que se pode dizer ou propor que os homens se conscientizem e se libertem ao investigar a si mesmos.

Deste ponto de vista, o papel do investigador “profissional” termina em um determinado momento, mas a investigação continua na direção do futuro, nas mãos da própria comunidade investigada, e dos pedagogos que seguirão junto com a comunidade, pesquisando e se educando enquanto transformam o mundo. E é neste sentido que se pode dizer que a “investigação temática” se transforma numa prática permanente da liberdade. Ou seja, o processo de investigação e de educação prepara os homens para sucessivas tomadas de decisão. Mas existe uma decisão prévia que inspira toda a pesquisa e que está presente em todas as etapas deste processo que procuramos descrever: a opção e a decisão de desenvolvimento permanente da consciência crítica e de libertação dos homens oprimidos”.

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Fiori, J. L. “Dialética y Libertad. In: Freire, P.; Fiori, E. M; Fiori, J. L. Educacion Liberadora. Bilbao: Editora Zero S.A., 197319 de setembro de 2021

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1. In: Freire, P.; Fiori E. M.; e Fiori J.L. Educación Liberadora. Bilbao: Zero S.A., 1973, p. 9.

2 Fiori, E. M. Aprender a decir su palabra (FREIRE; FIORI; FIORI, 1973, p. 10).

3 Idem, p. 11.

 

* Professor permanente do Progama de Pós-Graduação em Economia Politica Internacional, PEPI, Coordenadr do GP  da UFRJ/CNPQ. "O poder global e a geopolitica do Capitalismo", Coordenador Adjunto do Laboratório de "Ética e Poder Global", Pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou "O Poder global e a nova geopolítica das nações", Editora Boitempo, 2007; "História, estratégia  e desenvolvimento", Boitempo, 2011; "Sobre a Guerra", Vozes, 2018.  


FONTE: Outras Palavras

domingo, 17 de outubro de 2021

SBPC vê a ciência brasileira à beira do colapso


Em uma canetada, Guedes reduziu os recursos destinados ao ministério da Ciência e Tecnologia em 12,5 vezes – para míseros R$ 55,2 milhões. Afetará principalmente pesquisas e laboratórios. Renato Janine Ribeiro analisa o desmonte

 





Por Nádia Pontes, no DW

 

Para Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), corte de mais de R$ 600 milhões que iriam para a ciência é uma escolha política com consequências devastadoras. Sem ciência, o Brasil está fadado ao atraso, diz.

Em uma manobra que pegou a comunidade científica de surpresa, o Ministério da Economia provocou um corte drástico em recursos aguardados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Dos R$ 690 milhões previstos por meio de um projeto de lei, apenas R$ 55,2 milhões foram direcionados para a pasta. A redução foi feita pela comissão mista de orçamento do Congresso Nacional a pedido do ministério comandado por Paulo Guedes.

O montante inicial abasteceria principalmente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que contava com a verba para viabilizar uma nova chamada de projetos – que tinha sido suspensa em 2018 por falta de recursos.

Para Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a decisão do governo ameaça a continuidade da pesquisa no país. “É uma situação inacreditável”, afirma em entrevista à DW Brasil, apontando que o Brasil pode estar diante de um “apagão científico”.

Numa carta voltada aos parlamentares, a SBPC e as demais entidades que compõem a Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) – Academia Brasileira de Ciências, Andifes, Confap, Conif, Confies, Consecti e IBCHIS – classificam o corte de uma afronta e fazem um apelo para que os políticos revertam a decisão. “Está em questão a sobrevivência da ciência e da inovação no país”, alertam.

Sem ciência, o país está fadado ao atraso, considera Janine Ribeiro. “O Brasil está perdendo chances gigantescas de se projetar”, diz.

DW Brasil: O corte nos recursos pegou a comunidade científica de surpresa?

Renato Janine Ribeiro: Foi uma surpresa total. Imagine o projeto de lei (PLN 16/2021) estar para ser votado, na hora chega uma carta do ministro que desautoriza tudo o que estava sendo feito, e que muda todas as coisas… Isso não existe. É uma situação inacreditável o que aconteceu, um choque muito grande para a comunidade científica. As pessoas ficaram sem saber o que fazer diante disso.

É o choque e a preocupação. O ministro da Economia nem avisou o colega da Ciência, o Marcos Pontes, do que estava acontecendo, segundo o que sabemos. Isso também é uma atitude que não é usual, tratar um colega do ministério dessa maneira.

Quais são as consequências imediatas desse corte que vocês já conseguem vislumbrar?

São devastadoras. Ficamos praticamente sem financiamento para fazer pesquisa. Fica muito limitado. Desse valor total (R$ 690 milhões), R$ 200 milhões iriam para o chamado Edital Universal do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Ele lança editais específicos e, de vez em quando, um edital universal. O específico pode ser, por exemplo, para pesquisar uma vacina, para tratar de um problema específico, para desenvolver uma área que está precisando de aportes novos, etc. Já o edital universal está aberto para todas as áreas do conhecimento e tem finalidade de atender todas as áreas que se qualifiquem. Esse edital tinha R$ 250 milhões, dos quais R$ 200 milhões viriam desse dinheiro novo. E agora não virá, foi cortado.

Foram 30 mil pedidos de investimentos que entraram para esse edital até o dia 30 de setembro, que seriam analisados agora e que não terão mais como seguir.

Bolsas também serão afetadas?

Pelo o que sabemos até agora, foram afetados alguns auxílios, como as bolsas RHAE, que são bolsas de recursos humanos para atender empresas. Elas servem para financiar um aluno, um mestrando ou doutorando, para melhorar o desempenho econômico de uma empresa. Essas bolsas foram cortadas também na faixa de centenas de milhões de reais.

O que é possível fazer para minimizar esse impacto que o senhor classifica como devastador?

Temos que fazer uma grande mobilização. Já convocamos para o dia 15 próximo uma jornada de defesa da ciência. Nossa ideia é mostrar para a sociedade brasileira a importância da ciência, mostrar como a ciência se traduz numa melhor vida para as pessoas, como isso pode ser decisivo.

Tem que ficar claro que nós não estamos pedindo coisas para nós, que somos da área da ciência. Nós estamos querendo mostrar o papel decisivo que a ciência tem para o desenvolvimento econômico e social do país.

Na visão do senhor, a busca por soluções para frear a pandemia deveria ter mostrado isso aos governantes e à sociedade?

Nós fomos capazes de muito. Nós temos Jaqueline Goes de Jesus, a biomédica negra que fez o sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 em apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil.

Se o governo tivesse canalizado recursos para vacina, nós já teríamos tido uma vacina brasileira. Cuba tem sua própria vacina, e o Brasil tem mais cientistas e PIB (Produto Interno Bruto) que Cuba. Mas, em vez disso, o governo colocou dinheiro na cloroquina. É muito complicado isso.

O que pode acontecer com as universidades públicas, que já vêm sofrendo com cortes e falta de verbas?

Corremos risco de ver laboratórios fechando. É como ter uma Ferrari e deixar o motor fundir porque não se coloca óleo. Temos laboratórios que receberam investimento, construíram muitos resultados, com muita dedicação e, de repente, param de funcionar. Eles não se atualizam, os equipamentos não são mais reparados, não se recebem mais pesquisadores, estudantes não são mais enviados ao exterior para conhecer novas tecnologias e novas descobertas científicas. É algo tenebroso. Não consigo entender a lógica disso.

Como o senhor enxerga o futuro de um país que não investe em ciência?

O futuro é contrário, por exemplo, ao futuro alemão. A Alemanha é a atual potência que é devido à ciência. O país conseguiu chegar aonde chegou porque usou muito o resultado de pesquisas científicas. Laboratórios como os do Instituto Max Planck são fundamentais.

Se o Brasil não for capaz de fazer isso, nós vamos ficar um país atrasado. É como exportar o pó de café para importar as cápsulas feitas para as máquinas da bebida. É uma linha divisória que a industrialização pretendia romper na década de 1960, mas não basta ter indústria, é preciso ter conhecimento científico aprimorado.

O Brasil está perdendo chances gigantescas de se projetar. Assim como a mudança na diplomacia ambiental brasileira significou a perda de protagonismo internacional, já que o Brasil sempre foi um país respeitado por suas políticas de meio ambiente e serenidade na diplomacia, nós estamos tendo agora o risco de ter um apagão científico. E um apagão desse é algo que acontece depressa, e, depois, para reaver é muito demorado.

É possível reverter de imediato parte desse dano?

Existe dinheiro. Tanto que estão sendo perdoadas multas ambientais em grande valor. O governo está abrindo mão de recursos para outras áreas. Por que ele abre mão de multas de crimes ambientais e não canaliza esses recursos para a ciência? É uma escolha política.


FONTE: Outras Palavras




sábado, 16 de outubro de 2021

O futuro da educação na fogueira obscurantista de Bolsonaro

 

Por Rogerio Carvalho

 

"Assim como é característico de governos autoritários e obscurantistas, para não dizer fascistas, a educação é uma das principais vítimas do governo Bolsonaro", destaca o senador Rogério Carvalho (PT-SE)


                                                Protesto dos estudantes na Avenida Paulista   (Foto: Roberto Parizotti)

 

Segundo dados da OCDE, o Brasil está entre os poucos países do mundo que não aumentaram os recursos em educação para reduzir os prejuízos de aprendizagem durante a pandemia de Covid-19. Lamentavelmente, enquanto entre 67% e 78% das nações elevaram o orçamento para pelo menos alguma das etapas da educação básica, o governo Bolsonaro optou por seguir na contramão dos países e não destinou recursos extras para nenhum nível de ensino.

Aliás, desde o início da pandemia, não houve nenhuma iniciativa do Ministério da Educação de Bolsonaro para dar suporte às redes de ensino e à comunidade escolar. Os alunos foram mandados de volta para a casa sem qualquer amparo de um plano de estudos ou de políticas de acesso ao ensino remoto.

Para piorar, Bolsonaro vetou a ajuda financeira de R$ 3,5 bilhões para estados, municípios, Distrito Federal e municípios garantirem acesso à internet para alunos e professores das redes públicas. Na prática, o governo utilizou a pandemia para realizar um ajuste fiscal na educação, tanto que o Ministério da Educação encerrou 2020 com o menor gasto em educação básica na década. 

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

Além disso, tentou utilizar a educação como instrumento de validação da tese genocida de imunização natural de rebanho, que estimulou o contágio e resultou na morte evitável de milhares de brasileiros. Tanto que, o ministro da Educação chegou a fazer um pronunciamento em rede nacional estimulando o retorno precoce às aulas presenciais, sem qualquer análise epidemiológica, sem planejamento e sem um processo de imunização completa dos profissionais de educação.

Na realidade, desde o início do governo, Bolsonaro transformou o Ministério da Educação em um cavalo de batalha de combate ao que ele chamou de “marxismo cultural”. Privilegiou as pautas ideológicas em detrimento do planejamento e de políticas públicas de melhoria da qualidade e de indução ao acesso e à permanência, especialmente dos mais vulneráveis, à educação. Nomeou ministros negacionistas, que se ocuparam muito mais em atacar as nossas universidades e o patrona da educação, Paulo Freire, que completaria 100 anos no próximo domingo, do que em pensar no fortalecimento da educação pública e universal.

Mais do que isso, Bolsonaro é refém de uma visão elitista e excludente. O próprio ministro da Educação tem declarado que a universidade deve ser para poucos, que não quer o “inclusivismo” e que crianças com deficiência "atrapalharem" o ensino dos demais estudantes e, em alguns casos, ser "impossível a convivência".

Assim como é característico de governos autoritários e obscurantistas, para não dizer fascistas, a educação é uma das principais vítimas do governo Bolsonaro. Hitler promoveu o “Bücherverbrennung”, com a queima, em praça pública, de livros que desviassem dos padrões impostos pelo regime nazista. Bolsonaro queima o nosso passaporte para futuro com a falta de políticas públicas para a educação, com a total inoperância do Ministério da Educação e com o estrangulamento orçamentário da pasta, que levará à completa paralisia e à falta de capacidade do estado de investir no amanhã dos nossos jovens.


FONTE 

https://www.brasil247.com/blog/o-futuro-da-educacao-na-fogueira-obscurantista-de-bolsonaro

domingo, 19 de setembro de 2021

Paulo Freire, 100: Em busca de outra autoridade pedagógica


No centenário do educador brasileiro, um convite para repensar o papel do mestre. Em vez de lógicas disciplinantes, uma educação libertadora requer também outra gramática de poder, que promova o diálogo e a construção coletiva


Por Roberto Rafael Dias da Silva

 


Escrever sobre o centenário de Paulo Freire, considerando minha formação em Pedagogia e meu envolvimento com as questões educacionais, apresentou-se para mim nas últimas semanas como uma tarefa inadiável. Freire ocupa um espaço fundamental em nossas prateleiras; não somente pela difusão internacional de seu pensamento, mas também pela necessidade de produzir conhecimento em Educação colocando-o em nosso horizonte de reflexões. Justapondo-se ao seu pensamento, refutando suas hipóteses ou reelaborando seu repertório de indagações, as últimas gerações de educadores precisaram colocar o pensamento freiriano em permanente reflexão. Há que se reconhecer também – e isto ainda é um aspecto bem significativo – o quanto suas obras são recorrentemente mencionadas e cada vez menos estudadas. Ou ainda, como destacou o professor Flávio Brayner, no campo educacional construímos certo culto à personalidade do mestre, acompanhado de uma gradativa institucionalização de sua obra.

Reconheço a crítica realizada pelo professor Brayner e tais argumentos servirão de balizas intelectuais para a reflexão que farei neste texto. Isto é, sob o ethos do pensamento freiriano, evitarei uma posição de fidelidade para colocar em debate um aspecto que considero central nas obras do pedagogo brasileiro, qual seja: o redimensionamento da autoridade educativa. Certamente podemos ingressar no grande conjunto de suas obras por caminhos variados, considerando o alargado percurso de estudos elaborado por Freire e seus comentadores. Escolho examinar – e defender – uma concepção de autoridade que se deriva do repertório de estudos freirianos e que, contemporaneamente, ainda nos permite caracterizar um modo de relação pedagógica em nosso país.

A publicação da Pedagogia do Oprimido, no contexto das tensões políticas experienciadas na América Latina na década de 1960, atribuiu visibilidade para questões que respondiam aos desafios educativos de nosso continente. A crítica da educação bancária – centrada no professor e em sua necessidade de transmitir conteúdos – bem como o advento de uma educação problematizadora – baseada no diálogo, na inconclusão dos seres humanos e nos temas geradores derivados de sua condição existencial – renovaram a pedagogia latino-americana. O contexto das lutas democráticas, as demandas pelo enfrentamento das desigualdades e a difusão da teologia da libertação serviam de contexto para a emergência de um novo léxico para delinear a formação humana.

Alvo de inúmeras controvérsias, a relação educando-educador proposta na obra de Freire ainda é o tema que mais me instiga a considerar em minhas elaborações educativas. “Ninguém educa ninguém”, “o diálogo começa na busca do conteúdo programático” ou “os homens se libertam em comunhão” são expressões que – ainda que muito repetidas (a ponto de quase se tornarem clichês, como lembra Brayner) – recolocam em debate a temática da autoridade daquele que educa. Teria Freire abdicado da defesa do ensino e do lugar do mestre? Teria Freire fabricado um educador com vocação política e pouco compromisso com a qualidade do ensino? Sua pedagogia foi incapaz de tornar-se efetiva, ficando circunscrita a modelos alternativos e pedagogias populares? Irei responder de forma negativa a todas essas indagações, uma vez que Freire – com uma perspectiva humanista – permite-nos recolocar em debate a controversa questão da autoridade.

Richard Sennett na obra Autoridade, publicada originalmente no ano de 1980, auxilia-nos a pensar sobre os laços afetivos das sociedades modernas. Tais laços afetivos têm consequências políticas e a autoridade é uma dessas expressões emocionais do poder. Considerando a ambiguidade destes laços, bem como a dimensão contextual referente aos modos pelos quais cada sociedade constrói seus vínculos, vamos reconhecendo que a partir das mutações culturais da década de 1960 somos desafiados a pensar sobre a autoridade. No contexto pós-guerra e das variadas ditaduras que ocorreram no século XX, importante destacar que se consolidou uma espécie de medo ou negação da autoridade.

As imagens modernas acerca do exercício da autoridade supõem o uso da força, a capacidade de guiar os outros, os modos de disciplinar ou a capacidade superior de julgamento, como bem descreveu Richard Sennett. A autoridade, enfim, remete-se a uma força sólida, um refúgio para nossa proteção ou um guia que nos coloque no melhor caminho. Mais que um mero exercício de poder, a autoridade é um processo de tradução social (e subjetiva) das práticas de governo. Podemos aderir ou rejeitar, obedecer ou transgredir, defender ou substituir tais práticas, como é de nosso conhecimento. Importante destacar que todas essas características ou dimensões poderiam ser atribuídas ao professor, pelo menos em sua forma engendrada na Modernidade.

Com a consolidação dos regimes democráticos, no final do século XX, a questão da autoridade é retomada; desta vez buscando sinalizar para o seu reconhecimento na vida pública. Relendo alguns clássicos do pensamento social, Sennett defenderá na obra mencionada que as figuras públicas da autoridade precisam ser legíveis e visíveis. Isto é, “os cidadãos devem ler juntos, devem observar a situação da sociedade e discuti-la entre si”. Neste momento, julgo oportuno voltar a Freire e reconhecer a potencialidade política de sua definição da autoridade pedagógica, uma definição enraizada nas lutas educativas de nosso continente.

“Ninguém educa ninguém” pode ser interpretada como um ideal democrático da escola brasileira, na medida em que nossos modos de autoridade sejam legíveis e visíveis. Com Freire encontramos uma redefinição do papel do mestre e não o seu esmaecimento como sinalizam alguns filósofos contemporâneos. Nas palavras do pedagogo, “educador e educando (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento”. Sem vincular-me ao culto à personalidade – aspecto destacado por Brayner que procurei evitar – reconheço que os escritos freirianos trouxeram importantes contribuições para um redimensionamento da autoridade pedagógica. A busca por construir uma escola democrática, capaz de enfrentar as condições desiguais da América Latina, continua sendo nosso desafio e para isso Freire seguirá sendo um interlocutor fundamental. Acompanhados da potencialidade de seu pensamento, ainda precisamos reinscrever a aprendizagem para nossas crianças e jovens em uma gramática mais aberta e plural.

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Referências:

BRAYNER, Flávio. Para além da educação popular. Campinas: Mercado de Letras, 2018.

SENNETT, Richard. Autoridade. 2a ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Sennett & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

 

FONTE: Outras Palavras


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