quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"Estado ineficiente”, mito medíocre


Há trinta anos, mídia martela suposta superioridade da iniciativa privada. Vale examinar bases desta crença (e interesses por trás dela)…


Por Rafael Azzi


A ideologia liberal defende a ideia de que a iniciativa privada é capaz de produzir bens e serviços de forma eficiente e barata; enquanto o Estado, considerado ineficiente e corrupto, seria simplesmente um obstáculo ao bom funcionamento do mercado. Trata-se de uma ideologia maniqueísta, pregando sempre a dicotomia Estado ruim versus mercado bom. Em muitos casos, tal percepção discriminatória se mostra de acordo com a realidade e, quando posta em prática por um determinado governo, torna-se uma profecia autorrealizável.

Segundo a mesma lógica, os funcionários públicos são considerados ineficientes e preguiçosos. Trata-se de um preconceito comum e persistente, mesmo diante do fato de que existem funcionários exemplares nos mais variados setores públicos, e de que, em instituições privadas, há empregados que, adaptados à cultura empresarial, conseguem ser premiados mesmo se esquivando do trabalho ou usando de formas pouco éticas.

A base da argumentação, para quem defende esse ponto de vista maniqueísta, se refere à questão da estabilidade. Por lei, funcionários públicos têm direito a estabilidade no emprego após passar por um período de avaliação probatória durante três anos. Tal fato justificaria o senso comum de que eles trabalham menos do que aqueles que se empregam em empresas privadas. Essa explicação se baseia na premissa de que a principal motivação para a eficiência no trabalho é o medo da demissão. Na verdade, estudos modernos demonstram que essa ideia não está correta. Há diferentes motivações para o trabalho. Os principais estímulos motivacionais, tais como a percepção de realizar uma tarefa significativa, o reconhecimento dos outros e a possibilidade de progresso podem existir ou faltar tanto na iniciativa privada quanto no funcionalismo público.

O argumento do mercado mais eficiente também não se sustenta em diversos casos. Na realidade, em alguns setores a lógica mercadológica parece atuar de forma contrária à eficiência. No que se refere à saúde, por exemplo, é possível comparar dois sistemas situados em pólos opostos: EUA e Cuba. Os índices de expectativa de vida e de mortalidade infantil da ilha caribenha são praticamente os mesmos dos EUA. Entretanto, os gastos anuais dos EUA em saúde, por pessoa, são de U$ 5.711, enquanto Cuba gasta apenas U$ 251. Dessa forma, o Estado cubano tem um custo pelo menos vinte vezes menor para obter um resultado equivalente ao da iniciativa privada americana.

Isso ocorre porque o Estado pode investir diretamente nas causas dos problemas e, assim, conduzir o atendimento médico a quem mais precisa. Em 2001, uma comissão do Parlamento Britânico visitou a ilha e relatou que o êxito da sua política de saúde é devido à forte ênfase na prevenção das doenças e ao compromisso com a prática de medicina voltada para a comunidade. Tal procedimento gera melhores resultados com menos recursos. O mercado sempre segue cegamente a lógica da maximização do lucro, que nem sempre se mostra a mais eficaz para lidar com problemas sociais; ou, nos termos de Bill Gates: “capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que sobre doenças como a malária.”

No caso da ideologia liberal no governo, diversas vezes o que ocorre é uma profecia autorrealizável. Parte-se do princípio de que o Estado é ineficiente e corrupto, isso leva o Estado a investir pouco, pagar mal funcionários e sucatear os serviços públicos. O pouco reconhecimento e as más condições de trabalho geram insatisfação e greves. As paralisações tornam-se mais um argumento para afirmar que o serviço público é inerentemente ruim.

É o caso, por exemplo, do sistema carcerário brasileiro. Os governos recentes pouco investiram na área e não se interessaram pela renovação do sistema prisional medieval do país. Assim, ao invés de o Estado efetivamente tomar as rédeas da situação, surge uma solução de efeito rápido que agrada a todos: a iniciativa privada aparece para poder finalmente resolver a questão, sendo contratada pelo Estado para construir e administrar presídios. Muitos ganham com isso, menos a sociedade: os políticos que terceirizaram o problema, e os empresários que receberão dinheiro diretamente do governo.

Outro caso a ser citado é o que se refere ao tratamento de viciados em drogas. Enquanto muitos Centros de Atenção Psicossocial públicos (Caps) são negligenciados, o governo propõe como solução a internação em comunidades terapêuticas privadas. Observa-se que, nesses casos, não existe nem uma “lógica de mercado” propriamente dita operando na forma de competição e livre mercado. Presos e viciados não podem escolher o melhor serviço e são levados às prisões e às comunidades terapêuticas de forma compulsória. A competição por custos também inexiste, pois o serviço é subsidiado pelo governo.

Assim, pode-se observar que o mercado pode também trabalhar de forma contrária ao interesse coletivo. As instituições privadas de carceragem e de tratamento de drogados têm interesse em obter o maior o número possível de internações, sem que isso signifique a melhoria dos serviços oferecidos. Dessa forma, a dinâmica de interesses gera pressão do setor para que o governo endureça as leis de restrição de liberdade e incentive à internação compulsória por uso de drogas. Além disso, a reincidência de presos e de drogados também é benéfica para o mercado e prejudicial para a sociedade. Estudos afirmam que, no caso de internação, a reincidência de drogados é superior a 90% dos casos.

O argumento de que a terceirização pode desonerar o Estado também pode se mostrar falso. Em uma instituição pública, seja uma prisão ou um Caps, o Estado é responsável direto pelo salário dos funcionários e pela manutenção dos serviços. No caso das comunidades terapêuticas e das unidades de detenção privadas, o governo paga um subsídio pelo número de presos e de pacientes. Neste subsídio deve constar, para além dos custos fixos de salários e manutenção, uma certa margem de lucro para que a iniciativa privada se interesse em oferecer tais serviços.

É preciso analisar pontualmente as situações em que o Estado tem mais gastos ao oferecer diretamente serviços públicos. Na maior parte das situações, os maiores custos advêm de ações de transparência pública. Servidores devem ter a qualificação necessária e precisam ser contratados através de concursos públicos, e os gastos públicos são justificados e controlados através de processos de licitação e prestação de contas. Essa transparência tem como objetivo evitar atos indevidos e arbitrários, sendo condição necessária para o controle de práticas desonestas e antiéticas. Nas instituições privadas prestadoras de serviços, os profissionais são escolhidos pela empresa e o uso do dinheiro do governo não é controlado da mesma forma rígida utilizada na esfera pública para monitoramento de gastos.

Soluções possíveis para tal problemática seriam o controle e a fiscalização rígida, exercidos pelo Estado, nas empresas contratadas para executar serviços da esfera pública. No entanto, chega-se a uma contradição. Para que haja uma boa fiscalização por parte do Estado, o governo deverá ter mais infra-estrutura, pagar mais funcionários, ter mais custos com manutenção, dentre outros investimentos. Além disso, se a convicção liberal é a de um Estado intrinsecamente ineficiente e corrupto, de que adiantaria monitorá-lo? Essa é uma contradição do discurso liberal. Na verdade, em muitos casos, ao invés de o Estado se tornar mais eficiente ele se transforma no melhor parceiro que a iniciativa privada poderia ter.

A noção de Estado como local privilegiado de corrupção é sustentada igualmente por preconceitos ideológicos. Na verdade, pode-se afirmar que o Estado pode ser eficiente e o mercado corrupto, não havendo qualquer relação obrigatória entre esses termos. A corrupção do Estado é um problema real que deve ser combatido através de ações de transparência pública e da prestação de contas à sociedade. De acordo com um relatório produzido pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), o Brasil perde de R$ 50,8 bilhões a R$ 84,5 bilhões por ano com corrupção governamental. Entretanto, a corrupção não é exclusividade do Estado. No que se refere a processos de sonegação fiscal, classificado como corrupção privada, uma pesquisa da organização britânica Tax Justice Network aponta perdas muito maiores para o país: 280,1 bilhões de dólares por ano.

Assim, o mito do governo ineficiente e corrupto é um discurso amplamente disseminado porque auxilia muitos grupos, inclusive aqueles que lucram à custa do próprio Estado. É preciso determinar políticas públicas de acordo com o que seja melhor para a sociedade como um todo, sem a interferência indevida de ideologias e de preconceitos criados e corroborados pelo senso comum.


Rafael Azzi é filósofo

FONTE: Controvérsia

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Os “rolezinhos” e um apartheid à brasileira



O “rolezinho” demonstra o paradoxo da elite brasileira, que por um lado quer crescimento econômico, mas por outro quer manter os de pele marrom confinados na senzala

Por Wagner Iglecias e Rafael Alcadipani

Junto com alguns outros shoppings da capital, o Shopping JK Iguatemi, um dos templos do consumo de luxo em São Paulo, conseguiu uma liminar na Justiça impedindo o “rolezaum” que havia sido marcado pelas redes sociais para acontecer no local neste sábado. As portas automáticas que dão acesso ao estabelecimento foram desligadas e passaram a ser blindadas por policiais. Houve, ainda, a presença de um oficial de justiça na porta do estabelecimento. Caso o organizador do evento aparecesse e fosse reconhecido, seria conduzido a um distrito policial para esclarecimentos, segundo declarou à Veja SP o oficial de justiça. A situação estapafúrdia foi amplamente divulgada pela imprensa.

Em outro shopping, bem mais popular e localizado no extremo leste da cidade, a PM chegou a usar bombas e balas de borracha. Na prática, o Estado tem usado a força para impedir o sagrado direito de jovens pobres e da periferia de ir e vir. Os chamados “rolezinhos” estão sendo agendados por jovens e adolescentes destes bairros mais distantes por meio das redes sociais, e têm despertado o medo de comerciantes e frequentadores habituais dos shopping centers. Os primeiros rolezinhos aconteceram em shoppings da periferia, e a presença de seguranças e policiais também ocorreu. A ação deste final de semana seria mais marcante, pois fora escolhido um dos shoppings frequentados pela elite paulistana, localizado no caríssimo bairro do Itaim, um dos que mais concentra investimentos públicos e privados em toda a cidade. Vale lembrar que shoppings centeres ocuparam as páginas policiais dos jornais recentemente por suposto envolvimento em esquemas de propina para ter seus projetos aprovados.

As portas automáticas que dão acesso ao estabelecimento foram
desligadas e passaram a ser blindadas por policiais

A expedição de uma liminar, embora compreensível sob o ponto de vista daqueles que temiam a chegada de centenas ou milhares de frequentadores, digamos, “diferenciados”, escancara o que todos neste país sabemos mas muito poucas vezes falamos: apesar dos avanços institucionais e legais que o Brasil conheceu desde a redemocratização, alguns brasileiros são mais cidadãos do que outros. Alguns espaços são mais exclusivos do que outros. E o consumo, ainda que cantado em prosa e verso como motor da sociedade e supra-sumo da felicidade e da realização pessoal, não é, evidentemente, para todos. É estranhíssimo ver empresários buscando a ajuda do Estado, ainda que seja para obter uma simples liminar com o objetivo de impedir a diversificação de sua própria carteira de clientes. Afinal de contas, a elite brasileira é capitalista ou não?

Essa garotada que hoje tenta frequentar os shoppings nasceu na década de 1990, quando o discurso neoliberal já era hegemônico em nosso país. Cresceram ouvindo dia e noite que política é ruim e que o sucesso é uma conquista individual. Comprados o tênis de marca, o relógio da moda, o celular de última geração, o rolezinho no shopping é o top da ostentação dos que vem de baixo, da base da pirâmide social. E ai encontram o que? As portas fechadas. A porta na cara da molecada de pele marrom é o outro lado da moeda de um país onde uma boa parte da elite parece ser capitalista somente até a página 2. E que no dia a dia, há séculos, busca se apropriar, de todas as formas possíveis, do Estado, a fim de dirigir suas prioridades. Dos vultosos subsídios a setores empresariais ao eterno chororô contra os impostos, do poderoso rentismo que vive da rolagem da dívida pública aos editais amigos de obras e serviços públicos, da sonegação fiscal à domesticação de partidos e candidatos através do financiamento de campanhas eleitorais.

Fernando Henrique Cardoso talvez estivesse certo nos seus livros e artigos sobre a dependência brasileira: nunca tivemos, em nosso país, amplos setores de elite que trouxessem consigo um projeto de nação, destinado a integrar nos direitos, na cidadania ou sequer no consumo os milhões de despossuídos. Quando muito nossa elites têm um projeto de classe, ou nem isso. Ao longo de séculos boa parte delas contentaram-se em intermediar negócios com os países mais ricos e levar sua parte, e a polícia que se vire para segurar a massa mulata e preta das periferias paupérrimas. Sempre foi assim.

Ao lado dessa ignorância preguiçosa de nossas elites, temos a ignorância adestrada de nossos pobres. Quando se vê um garoto carregando um fuzil no meio de uma favela, de uma coisa pode-se ter certeza: ele não quer fazer a revolução e pôr o sistema abaixo. Pelo contrário, a violência é a forma pela qual pretende acessar e usufruir dos bens materiais que outros jovens conseguem obter por meios legais ou aceitáveis. A garotada pobre que se manda em grupos para os shoppings tem o mesmo desejo. Querem consumir os símbolos de status que de uns tempos pra cá imaginam ser acessíveis a eles também. Ignoram, no entanto, que ao invés dos shoppings muito melhor seria se tivessem acesso a teatros, cinemas, bibliotecas, centros esportivos e de lazer, tão ou mais inacessíveis a eles que estes ocos templos de consumo.

O “rolezinho” demonstra o paradoxo da elite brasileira, que por um lado quer crescimento econômico, mas por outro quer manter os de pele marrom confinados na senzala. A muralha que o “rolezinho” escancarou é formada por uma Justiça muitas vezes conivente com a desigualdade social, fato que se expressa em alguns casos como foi em Pinheirinho e agora nos “rolezinhos”.


Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.

Rafael Alcadipani é PhD em Management Sciences pela Manchester Business School (Inglaterra) e Prof. Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV.


FONTE: Controvérsia

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A reinvenção da política


Durante a redação da Constituinte norte-americana de 1787, James Madison, um de seus principais elaboradores e, posteriormente, presidente dos Estados Unidos, defendia a democracia junto a seus pares porque ela era a melhor maneira de defender os ricos e suas propriedades da pressão redistributiva dos pobres.


Por Silvio Caccia Bava



O pensamento liberal que inspirava James Madison considerava que os únicos que podiam assumir funções políticas - no Parlamento, no Executivo e no Judiciário - eram os proprietários. Era a afirmação da burguesia no poder. Uma nova classe criava então seu pensamento político e um sistema democrático que buscava garantir sua hegemonia política e sua permanência no poder.

Passaram-se mais de duzentos anos e o sistema político democrático liberal mudou pouco. Mas as lutas sociais do século XX acabaram por forçar a ampliação do conceito de cidadania, levando muitos países a adotar o sufrágio universal, o voto direto e secreto por parte dos cidadãos. E nesse novo cenário surgiram novos atores sociais e políticos, os trabalhadores se organizaram e entraram em cena, promoveram revoluções em muitas partes do mundo. O bloco soviético e a doutrina socialista tornaram-se uma constante ameaça para a burguesia no poder. Sob a pressão dos movimentos sociais, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa construiu o Estado de bem-estar social, reconhecendo e garantindo direitos sociais, oferecendo políticas públicas universais de qualidade que asseguravam proteção social e boa qualidade de vida para todos. 

Para enfrentar essa "perda de controle" do processo democrático por parte das elites econômicas, na segunda metade do século XX o neoliberalismo passou a propor a separação entre economia e política.

O processo econômico, liderado e conduzido por uma coalizão dos grandes grupos financeiros e industriais, correu com autonomia e em paralelo ao mundo da política, este último encarregado de construir a legitimidade dos governantes e administrar as pressões sociais, garantindo o status quo, isto é, a continuidade da democracia liberal e dos processos de eleição que asseguravam a manutenção das elites no poder.

Sob a hegemonia do pensamento neoliberal, a sociedade se organizou não para atender aos interesses das maiorias, mas para satisfazer as demandas dos grupos financeiros e industriais no poder. Para privilegiar os interesses dessa elite econômica, esbeleceu-se uma sabotagem sistemática dos interesses públicos, os intereesses da coletividade. O desvio dos recursos públicos para favorecer os grandes negócios, mediante processos de suborno e corrupção que chegam até os dias de hoje, foi o modo dominante para assegurr privilégios. A corrupção tornou-se um procedimento sistemático, constitutivo da forma de fazer política em benefício das elites.

As consequências sociais da lvire ação dos grandes conglomerados financeiros e industriais sobre as sociedades em que atuam são devastadoras, aumentando cada vez mais o fosso entre um punhado de ricos, e a grande maioria, cada vez mais privada de suas mínimas condições de vida.

Sem capacidade para processar os conflitos de interesses cada vez mais agudos entre o 1% e os 99%, como denunciam os movimentos Occupy, a democracia liberal, assim como os partidos políticos submetidos à sua lógica, perdeu legitimidade e abriu espaço para novas experimentações.

Novamente a realidade política escapa ao controle das elites e se acirra a disputa pela hegemonia. Essa disputa se dá tanto no plano das ideias quanto no plano da luta social e da formulação de novas políticas públicas. Um novo projeto de sociedade é defendido pelos indignados na Europa; pelos Occupy, nos Estados Unidos; pelos movimentos sociais na América Latina, que há cerca de quinze anos começaram a primeira Primavera. A segunda foi a Primavera Árabe.

Pois bem, esse projeto que se anuncia busca submeter a economia ao controle e direção democráticos, com vistas a priorizar o interesse das maiorias e preservar as condições ambientais, e não mais privilegiar os grandes grupos empresariais e financeiros. Evidentemente, o próprio conceito de democracia também mudou nessa nova disputa. Ele expressa as esperanças e sonhos de todos os despossuídos do planeta, que lutam pela criação social de novos direitos. Abre-se o espaço para o questionamento das atuais instituições e a invenção democrática.


Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil


FONTE: Controvérsia

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Conflitos entre poderes e visões de democracia no Brasil


Ocupantes do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos limites do atual arranjo institucional com pragmatismo político que, não raro, se deteriora em barganhas inaceitáveis


Por José Garcez Ghirard (*)



"A presidente quis jogar a crise no colo do Congresso.” A recente irritação do presidente do Senado, Renan Calheiros, contra Dilma Rousseff sintetiza as tensões que vêm marcando a vida política brasileira pós-manifestações de junho. Motivado pela reação da chefe do Executivo à pressão das ruas, o episódio pode ajudar a compreender a preocupante insatisfação dos brasileiros com a classe política. Pode também jogar luz sobre a lógica que informa os recentes conflitos entre poderes. Na raiz de ambos os fenômenos parece estar uma divergência de fundo sobre o próprio sentido da democracia no Brasil hoje.

O amuo de Calheiros, longe de ser pontual, revela um desconforto mais amplo nas relações entre Legislativo e Executivo. O Congresso dá mostras de se ressentir daquilo que vê como perda relativa de poder político e de prestígio social decorrente dos avanços do Planalto sobre sua prerrogativa de legislar. Cada vez mais, o Parlamento tem tido de se ocupar antes em reagir a propostas normativas do Executivo do que em elaborar projetos próprios.

Como já apontado diversas vezes, essa migração das principais iniciativas legislativas para o Executivo tem se dado sobretudo pela utilização recorrente de medidas provisórias (MPs) pela Presidência da República. Só no governo Dilma foram editadas, até agora, mais de uma centena delas. Nesse ponto, a presidente repete as gestões anteriores: também FHC e Lula se valeram prodigamente das MPs, enviando, em média, cerca de três para avaliação do Congresso a cada mês. Para além dos números, a relevância substantiva dos temas das MPs (orçamento, infraestrutura, educação, saúde...) reforça a percepção do domínio do Executivo sobre a pauta política do país, bem como da retração do espaço do Legislativo.

O fenômeno do esgarçamento da relevância legislativa do Parlamento não é exclusividade brasileira, é certo. Democracias presidencialistas como a dos Estados Unidos, por exemplo, têm exibido o mesmo padrão de redefinição institucional. Também lá, o Legislativo tem tipicamente negociado com o Executivo as condições para a aprovação dos projetos que dele recebe, mais do que avançado agendas próprias.

No Brasil, entretanto, essa negociação se dá em um contexto institucional muito específico, celebremente definido por Sérgio Abranches como “presidencialismo de coalizão”. O chefe do Executivo, cujo partido em regra não consegue maioria parlamentar suficiente para pôr em prática sua plataforma política, precisa se unir, no Congresso, a outras agremiações partidárias – frequentemente de perfil ideológico bastante diverso. Esse desenho institucional, que força a negociação constante entre os poderes e dá ao Legislativo a palavra final para a aprovação de projetos, nutre muitas vezes percepções do Congresso como indefensável obstáculo à governabilidade. A proposta de minirreforma constitucional avançada pelo Executivo incorporava esse diagnóstico negativo.

Ocupantes do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos limites desse arranjo institucional com pragmatismo político que, não raro, se deteriora em barganhas inaceitáveis. As tentações que emergem da busca de apoio político sólido partindo de uma base partidária movediça foram notoriamente ilustradas pelos episódios que culminaram na Ação Penal (AP) 470. O julgamento histórico reuniu na mesma narrativa Judiciário, Executivo e Legislativo, oferecendo à opinião pública uma oportunidade única de observar os meandros da relação entre os poderes.

Para além do maciço repúdio popular à corrupção, as reações fortemente antagônicas às condenações resultantes – da celebração efusiva à desqualificação do Judiciário como ideologicamente comprometido – evidenciam a coexistência, no Brasil, de entendimentos distintos sobre o sentido de vida democrática e de seu valor intrínseco.

Como observa Alain Touraine, o discurso sobre a democracia pode privilegiar aspectos diferentes do conceito. Logo após períodos ditatoriais, a ênfase tende a cair sobre a democracia como regime que garante a liberdade e a diferença. Em regimes democráticos mais consolidados, entretanto, é frequente criticar-se a liberdade jurídica como insuficiente para eliminar a desigualdade econômica e a exclusão social. Nesses casos, a ênfase costuma recair sobre a democracia como sistema que deve promover a igualdade entre os cidadãos.

É possível arguir que as duas leituras, com variações pontuais, venham balizando o debate político brasileiro ao longo das últimas décadas. A Constituição de 1988 abriga generosamente ambas as dimensões de valores. Historicamente, entretanto, elas se alternaram como elemento prioritário para a mobilização popular. Superadas as restrições à liberdade e à diferença características do período militar, ganhou compreensível primazia em nosso discurso político a perspectiva que acentua o objetivo democrático da igualdade. O veículo privilegiado para promovê-la são, como se sabe, as políticas públicas, cuja consecução demanda agilidade decisória.

Decorre daí o perigo da impaciência de alguns setores com o funcionamento daquelas instâncias cuja lógica é dialogal, como são o Parlamento e o Judiciário. A América Latina tem colecionado exemplos dessa exasperação do Executivo com os outros poderes, apresentados como contrários a interesses populares que seriam defendidos precipuamente pelas políticas da administração. Essa diferença em tempos e dinâmicas, no entanto, é essencial para a democracia. Legitimamente praticada, ela protege a pluralidade de ideias, aperfeiçoa a formulação de políticas e traça, no limite, a linha que separa modos democráticos e autoritários de promover a igualdade. O desafio das democracias é conciliar esses valores, garantindo eficiência de gestão e respeito à divergência.

O maniqueísmo tacanho que tem prevalecido em nosso debate político arrisca fazer esquecer que tais valores são complementares, não excludentes, e devem ser conciliados. Produzir tal conciliação, sempre difícil e provisória, é tarefa primordial das instituições. Quando são incapazes de fazê-lo, a democracia adoece.

As manifestações do meio do ano são índice claro de que o povo brasileiro considera insatisfatória a forma como seus representantes enfrentam essa tarefa. Elas condenam a aparente desconexão que eles têm com as demandas complexas da heterogênea sociedade brasileira. O resultado perigoso é o desgaste generalizado das instituições de governo e da crença no valor da política, fundamentos da democracia.

Os poderes da República têm por função promover e defender exatamente essas bases da vivência democrática. Seus conflitos recentes preocupam não pelas tensões que revelam, mas porque parecem muitas vezes motivados pela defesa de agendas e interesses cuja articulação com o bem coletivo nem sempre é evidente. Preocupam porque parecem contribuir muito pouco para a tarefa urgente de revitalizar a democracia brasileira. 


(*) Professor de Direito da FGV-SP.


Ilustração: Daniel Kondo

FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O especialista diante da "complexidade" do mundo (1)

                                      
                                     “O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada .”
George Bernard Shaw

Por Aluizio Moreira



Em várias oportunidades temos defendido que é de fundamental importância pensarmos o ser humano, procurando compreender sua função na sociedade, chamando a atenção para os aspectos de sua concepção de mundo, da sua visão e comportamento diante de problemas que nos cercam. Tentamos buscar o momento, ou os momentos, em que sua ação foi se diversificando, para alem do homo faber, assumindo funções cada vez mais especializadas.

Não desconhecemos que num passado remoto, como membro da grande família dos primatas (1), nós hominídeos, no estágio inicial de nossa formação, disputávamos, palmo a palmo com nossos familiares, não só o espaço físico, como os bens que a natureza nos oferecia.

E à medida que fomos nos separando, de forma isolada, das demais espécies, fomos também criando novas alternativas, não só diante do mundo exterior, como no interior de nós mesmos: ousamos transformar a natureza em nosso benefício; nos atrevemos a fabricar instrumentos, inclusive para fabricarmos outros tantos instrumentos; arrojamos-nos na criação de uma linguagem articulada e simbólica; finalmente desenvolvemos a capacidade magnífica e inimitável de abstrairmos. Fizemos-nos construtores, poetas, produtores e transmissores de conhecimentos e educadores.

Em termos de produção de bens de consumo e bens de produção, os trabalhadores também conheceram várias etapas de especialização em suas atividades laborais, expressas nas chamadas divisão social e divisão técnica do trabalho.

Segundo a literatura marxista, enquanto membros da comunidade primitiva, na qual os indivíduos eram comunitariamente produtores e consumidores, todos eram ao mesmo tempo agricultores, pastores e artesãos (portanto não especialistas), havendo apenas a divisão natural do trabalho, cuja base era o sexo: trabalho masculino/trabalho feminino. 

A primeira grande divisão social do trabalho aconteceu quando as tribos se dividiram em tribos de agricultores e tribos de pastores. A segunda divisão social do trabalho verificou-se quando as atividades agrícolas e artesanais se separaram no interior de uma mesma tribo.

Mas as especializações não pararam por aí, pelo contrário, aprofundaram-se. O advento do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva, provocaria uma divisão no interior de cada atividade. No artesanato, por exemplo, criaram-se atividades distintas, especializadas: dos funileiros, dos marceneiros, dos ferreiros, etc.

Como produtores e transmissores do conhecimento, como educadores, abandonamos o processo coletivo de ensino-aprendizagem sem escolas, na formação das gerações, e criamos instituições voltadas para o ensino-aprendizagem nos mais diferentes níveis e nos mais diferentes paradigmas, momento em que acontece o que muitos autores definem como divisão social do saber: separam-se aqueles que sabem daqueles que não sabem. Alguns membros da sociedade especializaram-se em ensinar, monopolizando o saber, inclusive como forma de dominação.

Mas não foi só nestes aspectos que os homens especializaram-se: surgiram os especializados em governar, os especializados em rezar, os especializados em curar, os especializados em filosofar, os especializados em legislar, os especializados em zelar pela aplicação das leis e pela penalização dos transgressores (2).

Em todos os casos por nós abordados até agora, verificamos que a especialização das atividades dos indivíduos ao nível da super e da infraestrutura, foi uma constante na sociedade humana. Correspondeu às fases de seu desenvolvimento considerando sua relação com a natureza, consigo mesmo enquanto espécie.

Sem querermos abrir discussão acerca da concepção gramsciana de  intelectuais, essa atividade, enquanto ligada à produção e transmissão do conhecimento e do saber, também conheceu o processo de especialização, originando a separação do trabalho intelectual do trabalho manual. 

Portanto o aparecimento mesmo da figura do intelectual já denota uma divisão social no domínio do saber, que o torna um individuo distinto dos demais na sociedade, o que só foi possível “graças a um sistema complexo de divisão do trabalho, liberados das urgências imediatas, dos cuidados cotidianos da sobrevivência” (FORQUIN, 1993, p.46). 

Além do mais, a dominação ideológica, um dos elementos necessários à reprodução dos sistemas divididos em classes sociais, é exercida pela intelectualidade especializada neste mister (3). Dominação, que para Gramsci, nas palavras de Mochcovitch (1988, p. 13), se dá através de dois fatores: “a interiorização da ideologia dominante pelas classes subalternas e a ausência de uma visão do mundo coerente e homogênea por parte das classes subalternas que lhes permita a autonomia.” 

A visão compartimentada, fragmentada das coisas, inviabiliza a possibilidade de identificação do objeto em todas suas diversas dimensões e logicidade. 


Notas explicativas:

1)A família dos primatas compreendia os hilobatídeos (gibões), pongídeos (orangotangos), panídeos(gorilas e chimpanzés) e hominídeos (homens).
2)Neste sentido os condenados ganharam até um espaço “particular” para cumprir as penas: o sistema penitenciário.  
3)Para Gramsci, há uma intelectualidade reprodutora ideológica do sistema e formadora da concepção do mundo das classes dominantes. Caberá no entanto aos “intelectuais orgânicos” que atuam junto aos trabalhadores, procurar elevar a consciência das massas, defendendo a “concepção do mundo revolucionária entre as classes subalternas.”  (Cf. Mochcovitch, p. 17-20).


REFERENCIAS

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Tradução: Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Arimed, 1993.

MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Democracia empresarial


 Por Gustavo Capela


O Mundo empresarial está mudando. E isso não é um fenômeno tão recente quanto alguns podem pensar. Empresas como a Google e a Semco que o digam. A própria idéia de “lucro primeiro, felicidade depois” está sendo revista por empresários de grande porte. As empresas com novo perfil têm em comum os horários flexíveis, a possibilidade de se divertir, relaxar e até dormir no local de trabalho, além de uma administração que leva em conta a individualidade de cada um, a forma como cada um consegue produzir. É a adoração à autenticidade. Em ambas as empresas retrocitadas as novas idéias vem aos montes e o “patrão” somente coordena os novos projetos.

Ricardo Semler é um dos visionários desse novo protagonismo empresarial. Brasileiro, professor de MIT, Harvard e de uma escola rural para crianças no interior de São Paulo, ele defende a gestão democrática. Nela, o próprio subordinado elege seu “patrão”. Na empresa de Semler, a Semco,  o indivíduo não tem horários fixos, mas sim metas específicas que são, surpreendentemente, escolhidas pelo próprio trabalhador. Perguntado sobre a eficiência, ou melhor, deficiência que essa falta de liderança instituída gera, Semler diz que o lucro não é nem deve ser o foco principal da atividade empresarial e, ao passo que em algumas ONGs, fundações ou até instituições filantrópicas seu discurso parece normal, diria que lembra até o senso comum, no mundo empresarial essa perspectiva vai de encontro frontal com toda a ideologia capitalista de busca incessante por lucro.

O modelo da empresa de Semler lembra a ideologia por trás dos trabalhos do vencedor do Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen. A principal tese do indiano premiado é a de que o desenvolvimento deve ser medido e ter como finalidade a liberdade. Ele parte do pressuposto de que o mero aumento de renda ou do Produto Interno Bruto não mensuram o avanço de uma sociedade. A liberdade, como fim e meio, seria o escopo que a vivência moderna deve buscar. E essa liberdade não se relaciona somente com o ideal político-social, mas também com o econômico. Assim, a economia deve respaldar a possibilidade de trocas livres entre os cidadãos do mundo, sem que existam restrições que impeçam inovações ou até rupturas com o atual modelo ideológico capitalista. O que há de mais inovador nesse liame elaborado por Sen é justamente o processo que, para atingir o fim da liberdade, deve ser, também, pautado pela liberdade, tanto do empreendedor quanto de seus subordinados.

A ideologia de Sen dá enfoque especial à qualidade de vida, que é, hoje, uma das principais pautas das empresas estadunidenses. Dados empíricos são apresentados no livro de Sen “Development as Freedom” que comprovam o vínculo entre o aumento de capacidades dos indivíduos e o bem-estar. Outros, como Semler, creditam ao bem-estar a produção mais eficiente. Assim, se há uma ligação direta entre bem-estar e aumento de capacidades gerais – liberdade individual – e entre estes e uma produção mais eficiente, é imprescindível que o trabalhador se sinta livre, se sinta bem, para trabalhar. O trabalhador deve se sentir livre para escolher como e para quem trabalhar. Essa é uma idéia da empresa Google. Em artigo publicado pela globo, a empresa afirmou que não vê a fuga de funcionários como uma coisa ruim. Eles dizem que, como a empresa só busca pessoas brilhantes e que estão sempre inovando, estão sempre inquietas para criar (os funcionários da Google tem 20% do seu tempo de trabalho para trabalharem em projetos próprios) a saída da empresa é algo comum. “Se eles saíssem do Google para se aposentar aos 30 anos seria frustrante, mas não é isso o que acontece. Geralmente, vão em busca de outros grandes desafios”, disse Félix Ximenes, diretor de comunicação do Google Brasil. Dá-se a idéia de que o Capitalista, o Empresário, deve atrair e, de certa forma, conquistar seu empregado.

Outros pensadores renomados, como o Professor Mangabeira Unger, trabalham essa perspectiva. O professor de Harvard diz que a famosa “terceira via” (que expõe uma alternativa aos modelos caducos do liberalismo – 1ª via – e o socialismo – 2ª) deve permitir o que é de mais peculiar na sociedade contemporânea florir: a diferença. Moldes iguais, estruturas fordistas, constituições emprestadas, pensamento imposto são soluções do passado. A nova onda do desenvolvimento – representada pelo pensamento de Sen – traz à tona a busca pelo sistema que abranja uma sociedade exausta, inquieta e pulsando pelo novo. Um “novo” que perpassa, necessariamente, uma via plural, autêntica e democrática.

Pode-se dizer que a verdadeira culpada dessas novas perspectivas é a cultura democrática que se instala nos países. Democracia entendida como participação e capacidade de decidir os rumos da vida social. É a interação entre os anseios individuais e os interesses coletivos. A vida social, seja no aspecto que for, gera um sentimento bipolar quando o trabalhador vive em uma sociedade que requer sua participação e que preza por seu engajamento e, ao mesmo tempo, o submete a um ambiente totalitário e opressor (o trabalho).

Aqueles que entendem o mercado como um ente separado da política, onde os agentes econômicos devem regular a si mesmos, buscando o lucro acima do bem-estar pessoal, podem levantar oposições. Dentre eles, alguns argumentariamn que o lucro é o código falado pelo sistema econômico, estando o bem-estar e o aumento das liberdades no campo político-social. Outros acreditam que a busca por lucro gerará bem-estar no futuro, no salário.  No entanto, estudos de Noam Chomsky e de Celso Furtado mostram que o aumento nos lucros quase nunca geram retorno para o trabalhador. Inclusive, Furtado, em seu livro Construção Interrompida, demonstra justamente o contrário. Nos anos do “milagre econômico”, enquanto as empresas aumentavam seus lucros, os trabalhadores perdiam poder aquisitivo devido à diminuição em seu salário real.

Tal perspectiva não é difícil de entender. Pensem na estrutura normal de uma empresa grande. Ela representa, de forma fiel, a sociedade desigual em que vivemos. Há um CEO e um Board of Directors que comandam a empresa. Essas pessoas representam a parcela pequena, seleta e riquíssima da sociedade. Abaixo deles, os diretores, que ganham bem, mas também não chegam aos pés do manda-chuva. Esse grupo é menos seleto, um pouco maior, mas continua concentrado na mão de poucos. Abaixo, os gerentes, abaixo deles, os sub-gerentes, até que se chega aos funcionários do mais baixo-escalão, que, aos milhares, ganham, via de regra, muito pouco e trabalham muito. E essa classe não tem nenhum dizer no rumo da empresa, apesar de estar em maior número.

Concordaria com algumas críticas que se opusessem ao modelo por falta de conhecimento do operário comum para fazer escolhas complexas. O operário comum no Brasil, segundo dados fornecidos pelo professor Victor Russomano, tem nível de escolaridade baixíssima -  primeiro grau incompleto. Ou seja, eles, via de regra, são analfabetos funcionais. Ou seja, é perceptível que o Estado não cumpre seu dever de dar aos cidadãos capacidades plenas do exercício da cidadania: não há cidadania sem educação.

Contudo, seria falacioso o argumento de que  um operário sem conhecimento específico não tem a contribuir com as decisões da empresa. E mais, acredito que o capitalista se beneficiaria mais do que cogita ao democratizar as decisões internas. As escolhas coletivas tendem a vincular mais aqueles que tomam a decisão. Se todos estiverem presentes no processo decisório, torna-se mais fácil a aceitação da regra.

E o dono da empresa não tem que se preocupar. Seu conhecimento certamente imporá respeito, e sua fala estará carregada de símbolos que serão bastante convincentes no que tange às situações específicas sobre as quais ele detém conhecimento. Ele (o dono da empresa) deve aprender a escutar, a ceder, e a mudar seu ponto de vista também.

 A sociedade que desejamos ter, com ampla participação e uma democracia efetiva, deve estar pautada no diálogo, na preocupação com o outro. E as empresas devem estar atentas a isso. Até o liberal mais ferrenho reconhece a influência da política e do Estado sobre o indivíduo. Em uma cultura efetivamente democrática, que é o objetivo primordial do Estado Democrático de Direito, a participação e o engajamento nas decisões políticas levam o indivíduo a estranhar um ambiente que não o escute ou o consulte quanto a decisões importantes. Isso porque ele estará acostumado a tomar decisões que afetam a vida de todos os seus concidadãos. Assim, restam-se infrutíferas as práticas exploradoras e dominadoras do capital.

Nesse contexto, o operador do direito não deve ficar para trás. Empresas como as mencionadas acima são só as mais conhecidas que utilizam esse novo prospectus. A tendência é um aumento brutal do tipo de gestão administrativa que leva em conta a felicidade, a qualidade de vida, e a participação efetiva de seu empregado nas decisões empresariais. Existem, inclusive, estudos que comprovam que o trabalhador feliz, descansado e relaxado produz mais e melhor, vide os números invejáveis da Google.

Os juristas que se prezam não só acompanham as inovações, como também tentam estruturá-las de forma a possibilitar o melhor desenvolvimento e consecução das mesmas. Esses novos aspectos supracitados devem trazer à tona novos estatutos e novas leis empresariais. Os conceitos de monopólio, de cartel, de fraude deverão ser revisitados, à luz do princípio que guia toda a Constituição: a dignidade da pessoa humana.

É importante que os escritórios de advocacia estejam a par de qualquer mudança no mundo empresarial, mas especialmente uma que abarque transformação tão drástica. Quanto mais o homem for livre, quanto mais a legislação exigir essa conduta e quanto mais esse ideal for efetivado, mais o empresário terá que atrair mão de obra por razões outras que a necessidade de renda.

Advogados de empresas de pequeno e médio porte devem ser os mais afetados pelas inovações a curto prazo. E isso se deve a diversas razões. As empresas multinacionais possuem marca, nome e atraem o trabalhador, muitas vezes por esses atributos. Além do mais, elas procuram locais em que a mão de obra é extremamente barata e passível de exploração. Foi assim que aconteceu em Taiwan, na China, na Índia, no Brasil e em outros países em que os Direitos Humanos foram deixados de lado em prol do benefício econômico de um grupo seleto. O fato de um país permitir a exploração exagerada da mão de obra geralmente atrai o olho capitalista que visa lucro acima de tudo. Pode não ser interessante, por exemplo, a uma fabricante de tênis, que explora trabalhadores na China e em Taiwan, que haja novos rumos em sua filosofia empresarial.

Não se negocia com Direitos Humanos e, por isso, não se compete de igual para igual com quem o despreza. Assim, é possível que a ideologia libertária não atinja uma estrutura dessas a curto prazo.

Apesar disso, não é mistério algum que no mundo empresarial a sobrevivência está necessariamente atrelada à adaptação. É o conceito de competição. Em um regime democrático pleno, onde as capacidades gerais individuais são elevadas, e os indivíduos possuem capacidades reais de consecução de seus objetivos, a economia de mercado registraria seu maior grau de competição. Ou seja, se o desenho institucional político der indícios de que ele deve seguir essa tendência, é possível que haja mudanças no mercado e, por conseguinte, até nas multinacionais.

Autores como Celso Furtado entendem que as multinacionais são beneficiadas pelo processo de Globalização neoliberal, não restando espaço para o pequeno e médio empresário e muito menos para inovações nas estruturas de mercado. A perspectiva libertária e emancipatória é contrária ao viés “globalizante” do neoliberalismo, onde todos devem se adequar a uma estrutura pré-concebida e estipulada “de cima para baixo”. A idéia é sobrepor os valores como a liberdade e a igualdade à vontade de lucro e permitir a autenticidade, originalidade e diferença do status quo.

Logo, empresas familiares ou que não detêm tanto destaque no cenário mundial, estão mais suscetíveis às mudanças estruturais da política. Nessas empresas, normalmente, o dono também está mais próximo de seu operário e é mais capaz de travar um diálogo, dando ao processo de inclusão uma dinâmica mais rica e mais capaz de sucesso.  Até porque, em alguns casos, o dono sente a necessidade de “chacoalhar” a estrutura para que ela se sustente e evite a falência. Empresas com tais necessidades são as mais comuns dentro do Brasil. O sucesso, infelizmente, continua sendo a exceção.

Nesse diapasão, o pequeno e médio empresário que, segundo Furtado, são excluídos do processo globalizante, buscam soluções novas, buscam novas formas de sobreviver, passando, necessariamente, por uma análise e sensibilidade ao ambiente político, tendo em vista a grande influência que este último possui na vida econômica.

As mudanças nem sempre ocorrem rapidamente e não é possível prever como e para onde vamos antes da mudança em si. Entretanto, no contexto político-social que vivemos, parece ser insustentável a estrutura que exclui, que oprime e que causa claustrofobia aos anseios individuais. O trabalhador deve ser senhor de seu destino, sem a restrição opressora de quem possui mais dinheiro.


FONTE: Brasil e Desenvolvimento

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