segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O especialista diante da "complexidade" do mundo (1)

                                      
                                     “O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada .”
George Bernard Shaw

Por Aluizio Moreira



Em várias oportunidades temos defendido que é de fundamental importância pensarmos o ser humano, procurando compreender sua função na sociedade, chamando a atenção para os aspectos de sua concepção de mundo, da sua visão e comportamento diante de problemas que nos cercam. Tentamos buscar o momento, ou os momentos, em que sua ação foi se diversificando, para alem do homo faber, assumindo funções cada vez mais especializadas.

Não desconhecemos que num passado remoto, como membro da grande família dos primatas (1), nós hominídeos, no estágio inicial de nossa formação, disputávamos, palmo a palmo com nossos familiares, não só o espaço físico, como os bens que a natureza nos oferecia.

E à medida que fomos nos separando, de forma isolada, das demais espécies, fomos também criando novas alternativas, não só diante do mundo exterior, como no interior de nós mesmos: ousamos transformar a natureza em nosso benefício; nos atrevemos a fabricar instrumentos, inclusive para fabricarmos outros tantos instrumentos; arrojamos-nos na criação de uma linguagem articulada e simbólica; finalmente desenvolvemos a capacidade magnífica e inimitável de abstrairmos. Fizemos-nos construtores, poetas, produtores e transmissores de conhecimentos e educadores.

Em termos de produção de bens de consumo e bens de produção, os trabalhadores também conheceram várias etapas de especialização em suas atividades laborais, expressas nas chamadas divisão social e divisão técnica do trabalho.

Segundo a literatura marxista, enquanto membros da comunidade primitiva, na qual os indivíduos eram comunitariamente produtores e consumidores, todos eram ao mesmo tempo agricultores, pastores e artesãos (portanto não especialistas), havendo apenas a divisão natural do trabalho, cuja base era o sexo: trabalho masculino/trabalho feminino. 

A primeira grande divisão social do trabalho aconteceu quando as tribos se dividiram em tribos de agricultores e tribos de pastores. A segunda divisão social do trabalho verificou-se quando as atividades agrícolas e artesanais se separaram no interior de uma mesma tribo.

Mas as especializações não pararam por aí, pelo contrário, aprofundaram-se. O advento do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva, provocaria uma divisão no interior de cada atividade. No artesanato, por exemplo, criaram-se atividades distintas, especializadas: dos funileiros, dos marceneiros, dos ferreiros, etc.

Como produtores e transmissores do conhecimento, como educadores, abandonamos o processo coletivo de ensino-aprendizagem sem escolas, na formação das gerações, e criamos instituições voltadas para o ensino-aprendizagem nos mais diferentes níveis e nos mais diferentes paradigmas, momento em que acontece o que muitos autores definem como divisão social do saber: separam-se aqueles que sabem daqueles que não sabem. Alguns membros da sociedade especializaram-se em ensinar, monopolizando o saber, inclusive como forma de dominação.

Mas não foi só nestes aspectos que os homens especializaram-se: surgiram os especializados em governar, os especializados em rezar, os especializados em curar, os especializados em filosofar, os especializados em legislar, os especializados em zelar pela aplicação das leis e pela penalização dos transgressores (2).

Em todos os casos por nós abordados até agora, verificamos que a especialização das atividades dos indivíduos ao nível da super e da infraestrutura, foi uma constante na sociedade humana. Correspondeu às fases de seu desenvolvimento considerando sua relação com a natureza, consigo mesmo enquanto espécie.

Sem querermos abrir discussão acerca da concepção gramsciana de  intelectuais, essa atividade, enquanto ligada à produção e transmissão do conhecimento e do saber, também conheceu o processo de especialização, originando a separação do trabalho intelectual do trabalho manual. 

Portanto o aparecimento mesmo da figura do intelectual já denota uma divisão social no domínio do saber, que o torna um individuo distinto dos demais na sociedade, o que só foi possível “graças a um sistema complexo de divisão do trabalho, liberados das urgências imediatas, dos cuidados cotidianos da sobrevivência” (FORQUIN, 1993, p.46). 

Além do mais, a dominação ideológica, um dos elementos necessários à reprodução dos sistemas divididos em classes sociais, é exercida pela intelectualidade especializada neste mister (3). Dominação, que para Gramsci, nas palavras de Mochcovitch (1988, p. 13), se dá através de dois fatores: “a interiorização da ideologia dominante pelas classes subalternas e a ausência de uma visão do mundo coerente e homogênea por parte das classes subalternas que lhes permita a autonomia.” 

A visão compartimentada, fragmentada das coisas, inviabiliza a possibilidade de identificação do objeto em todas suas diversas dimensões e logicidade. 


Notas explicativas:

1)A família dos primatas compreendia os hilobatídeos (gibões), pongídeos (orangotangos), panídeos(gorilas e chimpanzés) e hominídeos (homens).
2)Neste sentido os condenados ganharam até um espaço “particular” para cumprir as penas: o sistema penitenciário.  
3)Para Gramsci, há uma intelectualidade reprodutora ideológica do sistema e formadora da concepção do mundo das classes dominantes. Caberá no entanto aos “intelectuais orgânicos” que atuam junto aos trabalhadores, procurar elevar a consciência das massas, defendendo a “concepção do mundo revolucionária entre as classes subalternas.”  (Cf. Mochcovitch, p. 17-20).


REFERENCIAS

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Tradução: Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Arimed, 1993.

MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988. 

Um comentário:

  1. Vemos no texto, antes de mais nada, uma concepção de Homem. Um Homem, antes de mais nada, essencialmente racional, essencialmente produtor (de qualquer coisa), e agente da História e de Si (ou que deveria ser). Essa é, classicamente, uma idealização do Homem aprofundada na Modernidade. A forma como nos percebemos muda de época para época, de cultura para cultura e a variedade é enorme. Erro é tornar apenas essa fatia de nós um Universal, como se fôssemos essencialmente isso ou aquilo. De certa forma, a ideia que temos de nós mesmos corresponde ao espírito da época em que vivemos. Um homem voltado para a Produção, vítima ou não desse processo e que pode ou não tomar as rédeas do processo, pouco importa, corresponde a um Mundo que não mais prepondera nas entranhas do viver social que se desenrola frente aos nossos olhos hoje em dia. Considerar que temos uma Função na Sociedade é reduzir todo o nosso Existir, é reduzir todas nossas angústias, todos nossas vontades de viver. Angústias estas que se expressam, inclusive, não só nas artes mas nas utopias e ópios diversos, religiões. Eu diria que para olhar o Homem de forma mais global seria necessário olhá-lo para o que o constitui de mais orgânico, mais elementar, que são nossos arcaísmos emocionais, nossas paixões e temores, aquilo que perpassa todo o nosso existir, que nos faz sonhar com dias melhores, mundos além deste aqui, que nos faz lutar por bandeiras ou produzir poemas e pinturas. Talvez estejamos caminhando para a compreensão de que o que sedimenta o nosso estar-junto, o que nos torna seres sociais, são mais nossas irracionalidades do que nossas racionalidades. E não estaríamos de acordo com o espírito do tempo em apostar na ideia de nós mesmos como Irracional? Basta olhar para o dia-a-dia. O cotidiano nos denuncia.

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