domingo, 25 de setembro de 2016

Memórias do cárcere




Incluir na "ESTANTE"

Por Marcelo Freixo 


Costumo dizer que os presídios são nossos centros de amnésia. No interior de seus muros, entulhamos o que desejamos esquecer. Nesse psiquismo carcerário, tentamos enjaular nossas desumanidades, contradições e sadismos.


A memória não é constituída apenas pelas lembranças mas também pelos esquecimentos. Esquecer-se pode ser uma escolha, um ato político. Esse esforço de memória seletiva explica o motivo de os 23 anos do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, não serem devidamente lembrados.

Na canção “Haiti”, Caetano Veloso escarneceu o silêncio sorridente diante do massacre de 111 presos indefesos, quase todos pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres. Já no interior dos muros, o efeito da chacina foi bem diferente do riso silencioso.

O massacre foi um divisor de águas dentro do sistema penitenciário brasileiro. Acompanhei isso de perto porque à época tinha 25 anos, cursava História e trabalhava como professor voluntário num presídio em Niterói.

O projeto tinha uma turma para alfabetização de adultos e duas para quem não concluíra o ensino fundamental. Não havia alunos com o segundo grau completo. Alguns anos depois, presidi o Conselho da Comunidade, responsável por fiscalizar as prisões.

Essas experiências me fizeram ser chamado para mediar várias rebeliões, que se multiplicavam devido ao colapso das penitenciárias do Rio. Em todas era possível sentir a herança do Carandiru. As negociações se tornaram mais tensas. Os detentos passaram a fazer reféns por acreditarem que assim poderiam evitar um novo massacre. O Carandiru agravou a cultura violenta nas prisões.

Vinte e três anos se passaram, tragédias se repetiram e nós não conseguimos discutir seriamente o papel do sistema penitenciário. Ainda é difícil mostrar o óbvio: a violência nas cadeias alimenta a violência fora delas. Nossas prisões são lugares muito caros para tornar as pessoas piores.

Punimos muito e mal. A população carcerária brasileira cresceu 317% entre 1992 e 2013. São 600 mil detentos, quase 40% deles ainda não foram julgados. Mesmo assim, muita gente insiste que somos o país da impunidade e pede o endurecimento penal. Isso só ocorre porque condenamos principalmente os invisíveis, pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres. As prisões têm cor e classe.

Certa vez, depois de negociar por dois dias o fim de uma rebelião em Bangu, um preso me disse: “Tem uma coisa que o senhor precisa entender. As prisões são pedaços das favelas. É por isso que as coisas acontecem assim aqui e lá”. A música de Caetano é certeira. A exclusão não começa no sistema prisional, ele apenas a consolida.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelo-freixo/2015/10/1693227-memorias-do-carcere.shtml


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A desigualdade e a educação depois do golpe


Por Otaviano Helene  


Durante duas décadas, entre 1980 e 2000, o Brasil disputou as piores posições no quesito concentração de renda. Os demais países nessa macabra disputa eram Honduras, África do Sul, Chile e Paraguai, entre alguns outros poucos, todos conhecidos por suas histórias não democráticas e de grande violência institucional. Por volta de 1990, o Brasil chegou a ser o país com a pior distribuição de renda entre todos aqueles para os quais havia informações disponíveis. Essa lamentável situação foi resultado da combinação da longa história brasileira de exclusão e segregação, do projeto imposto pela ditadura militar e da consequente crise econômica que se seguiu após seu fim.

Embora na última década e meia tenha havido uma melhora na distribuição de renda no Brasil, como estávamos em uma situação muitíssimo ruim e essa melhora foi muito tímida e baseada em instrumentos de abrangência limitada, ainda estamos entre os dez ou doze países mais desiguais do mundo e, claro, em péssima companhia.

Pelo desejo daqueles partidos e setores sociais que usurparam e apoiaram a usurpação da presidência da República, o Brasil deve retroceder no que diz respeito à distribuição de renda; afinal, quando as políticas que esses partidos e setores defendem estavam em pleno vigor no país, nossa desigualdade era maior e não mostrava tendências de melhoria sistemática, como ilustra a figura.



Ser um dos países mais desiguais do mundo não é coisa pouco grave, pois uma boa distribuição de renda é condição sine qua non para se construir um país democrático, soberano e desenvolvido e garantir a todos uma boa qualidade de vida (1). Se ao final do período ditatorial pudemos ter o sonho de que em algumas décadas conseguiríamos construir tal país, os últimos 30 anos e o recente golpe mostram que falta muita luta para que esse sonho possa se realizar.

A educação é uma condicionante

A educação básica poderia – e deveria – ser um instrumento para enfrentar a desigualdade e contribuir para a construção de um país mais agradável no futuro. Entretanto, no Brasil, isso não acontece. Ao contrário: o sistema educacional atua exatamente de forma a reproduzir em seu funcionamento as desigualdades econômicas e sociais.

As escolas dos mais pobres são muito piores do que as escolas dos mais ricos; seus professores têm condições de trabalho muito mais precárias; a quantidade de anos de estudo dos estudantes economicamente mais desfavorecidos é muito menor do que a de seus colegas mais ricos. A educação formal das crianças mais pobres começa em uma idade avançada, termina cedo e se restringe a poucas horas diárias de atividade escolar, inexistindo recursos extraescolares, como aulas particulares, atividade esportiva orientada, acompanhamento psicológico, cursos de línguas, viagens culturais etc., coisa comum nos segmentos mais favorecidos.

O valor monetário do investimento educacional em favor dos mais pobres e dos mais ricos dá uma ideia de quão desigual é a educação desses dois grupos. Os investimentos educacionais na educação de uma criança ou jovem pertencente ao contingente formado pela terça parte mais pobre pode não chegar aos trinta mil reais ao longo de toda a vida, ficando, não raramente, ainda bem abaixo disso. No outro extremo, entre os mais ricos, esses investimentos superam, e não raramente em muito, os 500 mil reais.

O fator de discriminação e exclusão dessa diferença educacional é enorme, como revelam, por exemplo, os resultados do ENEM, exame que se tornou um vestibular nacional e serve de porta ou de barreira para o futuro: não há uma única escola classificada entre as de nível socioeconômico baixo ou muito baixo pelo INEP (padrão que engloba a maioria da população brasileira), cujos estudantes tenham tido um desempenho equivalente à média observada nas escolas classificadas como de nível socioeconômico muito alto.

Se, além disso, considerarmos que entre os contingentes classificados como tendo nível socioeconômico baixo ou muito baixo, concluir o ensino médio é uma rara exceção, vemos o poder discriminador e excludente do nosso sistema educacional. Ou seja, não há nenhuma chance – a menos das raríssimas exceções individuais – que uma criança que faça parte da metade mais pobre da população tenha sucesso em sua vida escolar (2).

Com essas características, o sistema educacional brasileiro reproduz a desigualdade atual e constrói as bases para a desigualdade futura, não deixando sequer uma fresta ou um atalho para sua superação.

Triste conclusão

Considerando os perfis ideológicos daqueles que assumiram a presidência da República, por que e de que forma o fizeram, sem que sejam intensificadas as lutas em defesa da democracia, não pode haver nenhuma esperança de superação das desigualdades nacionais, inclusive no sistema educacional. Demonstrações de como esses setores veem o sistema educacional têm surgido de forma cada vez mais frequente.

Exemplos não faltam. O projeto “escola sem partido” e a forma violenta que seus defensores utilizam para defendê-lo; a posição do secretário de estadual de educação pública paulista, que é contra a educação pública paulista (!), pois entende que apenas segurança e justiça devem ser funções do Estado, sendo que “tudo o mais (educação inclusive), deveria ser providenciado pelos particulares”; a PEC 241, que impede que os gastos públicos – origem dos recursos para a educação pública – cresçam além da inflação, quando as necessidades de recursos crescem não apenas com a inflação, mas, também, com o crescimento da população, com o crescimento das exigências educacionais e com o crescimento do PIB, são apenas alguns exemplos recentes do que pode vir por aí.

Os discursos “dinheiro tem, o problema é a gestão”, “só poderemos aumentar os recursos para a educação pública quando acabar com a corrupção” (este, repetido inclusive por aqueles que participam alegremente das formas mais sórdidos de corrupção, entre elas a sonegação de impostos e de contribuições sociais); “se acabar com o desperdício, a educação pública melhorará”; “dinheiro, tem, o problema é que está mal distribuído”, entre outros do mesmo tipo, tão comuns em passado recente e que não haviam desaparecido de todo, voltarão.

A menos que haja uma mobilização suficientemente intensa na defesa da educação pública, da superação das desigualdades e no enfrentamento dos usurpadores da democracia.

Notas:

1) Sobre a dependência dos indicadores de bem estar social com a desigualdade na distribuição de renda, ver, por exemplo, o vídeo “como a desigualdade econômica prejudica as sociedades”, um TED Talk apresentado pelo professor Richard Wilkinson, acessível em https://www.youtube.com/watch?v=BJkH89aCDo4

2) É necessário lembrar que os trabalhadores que fazem parte da metade mais pobre da população recebem da ordem de um salário mínimo ou menos por mês e que a renda domiciliar per capita nesse setor é inferior a cerca de R$ 500 por mês; a renda familiar per capita da quarta parte mais pobre da população é inferior a cerca de cem reais por mês.


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Não existe neutralidade na educação


Por Nei Alberto Pies


Afirmações fundamentalistas e simplistas tendem constituir falsas verdades. Caso típico das absurdas afirmações dos que defendem as ideias de uma "escola sem partido”. O viés do debate que se coloca deve ser mesmo pela afirmação das diferentes ideologias, mesmo daqueles que imaginam ser possível existir neutralidade na educação, dizendo ser possível "uma escola sem partido”. Eles também agem por ideologia.

Verdade é que não existe a possibilidade de uma educação neutra. Os diferentes conhecimentos sempre se apresentam permeados por diferentes ideologias. Mesmo quando tratamos de métodos, estes nunca são isentos de ideologia. As ideologias são as diferentes ideias que estão em permanente disputa na sociedade. Quando se tornam fortes, chamamos as mesmas de ideologias dominantes. Se as ideologias estão na sociedade, como não estarão na escola? A escola nunca foi e nunca será uma redoma de vidro; sempre será o reflexo e espelho da sociedade.

A educação sempre acontece em dois movimentos: ou para manter o "status quo”, deixando tudo como está ou ser uma ferramenta de emancipação humana, afirmação das liberdades e transformação da realidade. Pelas ideias que defendemos e pelas atitudes que tomamos podemos ser avaliados como liberais ou conservadores, libertários ou opressores, democráticos ou autoritários.

A alegação de que professores das escolas da rede de ensino fundamental e de ensino médio fazem doutrinação política-ideológica carece de qualquer fundamento. Pois, vejamos. Os professores sempre exercem certa influência sobre seus alunos, mas jamais a ponto de doutrina-los. O poder da educação é muito mais relativo do que imaginamos. Paulo Freire, nosso grande pedagogo brasileiro, entendeu o papel da educação: "a educação não muda o mundo. A educação muda pessoas e as pessoas (se quiserem)mudam o mundo”. O discernimento e o conhecimento dos alunos, com tantas outras informações e vivências, jamais os coloca na condição de doutrinados. Quem acha que os jovens estão perdidos é porque não fez nenhuma visita aos estudantes que ousaram ocupar suas próprias escolas.

O alvo deste movimento da "escola sem partido” parece mesmo ser o ataque à dignidade, reputação e liberdade de cátedra dos professores. Uma espécie de ditadura institucionalizada, agora com força em leis e regimentos. Uma forma de mudar radicalmente a escola que afirmamos e construímos nos últimos 30 anos, com fundamentos reformistas e progressistas, sem perguntar nada aos maiores interessados: os professores, os alunos e a comunidade escolar como um todo (pais, mães, funcionários, comunidade geral). Com que segurança trabalharão os professores sabendo que, a qualquer hora, por motivos adversos e alheios ao seu controle, terão de explicar e justificar a forma e o conteúdo que estão trabalhando nas salas de aula? Com que método trabalharão? Como abordarão os temas sociais não previstos como violência, drogas, sexualidade, construção de relações de solidariedade e paz e direitos humanos? Ainda haverá a possibilidade de escolher livros didáticos (mais de um livro didático já trará problemas ideológicos). O que apresentarão de conteúdo aos estudantes sempre terá que ter fonte e autoria, mas o que fazer quando os estudantes perguntarem pela opinião do professor? Em caso de dúvidas sobre a neutralidade ou não dos conteúdos, a que instâncias o professor recorrerá? Serão proibidos o uso de anéis, de símbolos ou adereços religiosos no corpo e nas vestimentas dos professores? Ainda será possível assumir-se professor e educador? O que faremos com nossos Projetos Políticos e Pedagógicos e com Regimentos Escolares que descrevem o que desejamos construir, através da educação, como ser humano, como sociedade e como escola num viés crítico, emancipatório e libertário (mesmo que na prática ainda tenhamos dificuldades de realizar práticas democráticas e emancipatórias na escola)?

O político na educação não é o ideológico-partidário. O político na educação refere-se sempre às ações e intervenções na sociedade, ou seja, possibilidades de mudança concreta na vida das pessoas. Por isso, talvez, ninguém fale sobre o verdadeiro temor dos defensores desta absurda ideia de controlar a escola pública, para que ela não tenha qualidade social. "Quando se nasce pobre, estudar é o maior ato de rebeldia contra o sistema”. No atual momento histórico, os pobres, os filhos de trabalhadores ousaram formar-se na faculdade. Aí, bem, aí já é demais, não acham?

A defesa da democracia e da liberdade de expressão de todos são os maiores contra-argumentos da "escola sem partido”. Os fundamentalistas, que se dizem sem ideologia, não passarão! Nós, os professores, com liberdade para ensinar, "passarinhos”.

A escola tem de ser um lugar de livre pensamento! Não existem soluções para a coletividade fora da democracia e da política.


Nei Alberto Pies é Professor de rede municipal e estadual. Ativista de direitos humanos


FONTE: ADITAL

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Partidos, pragmatismos e ideologias



Por Nei Alberto Pies


O pragmatismo está mesmo matando a essência da política: a construção do bem comum.

Nas últimas décadas, aprendemos fazer política através dos partidos. Fundamos e construímos partidos como ferramentas de mudança e transformação social.

Hoje, os partidos no Brasil não fazem mais alianças programáticas e ideológicas, mas somente acordos de interesses pela tomada do poder, o que empobrece a política e a torna um grande balcão de negócios e de interesses. O pragmatismo não concebe mais a construção de um capital social ou a manutenção deste junto aos eleitores. O pragmatismo impõe-se para sufocar a diversidade dos pensamentos. O pragmatismo opera resultados, não importando-se com os processos.

O que acontece em Brasília reproduz-se, em larga escala, em nossos municípios. Surgem então, perguntas emblemáticas: a) Os partidos perderam sua função de organizar propostas e programas para governar nossas cidades? b) É possível fazer política fora dos partidos? c) Será agora a grande mídia, o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal que darão os ordenamentos jurídicos, organizativos e políticos da política?

As circunstâncias do momento histórico colocam em cheque quase tudo o que aprendemos sobre política e organização social. Desaprendemos fazer política? Desconsideraremos, por definitivo, as mentes críticas, as organizações e movimentos sociais, os lutadores que ainda estão a fim de organizar a sociedade com base na cidadania, nos direitos humanos e sociais, nas oportunidades de estudo, cultura e trabalho para todos?

Fato é que, fora da política não há soluções que promovam a liberdade e a democracia. Fora da política reina a ditadura. Antes tarde que mais tarde, resistamos pelas práticas democráticas que nos permitiram experimentar uma cidadania com mais oportunidades para todos e a construção de cidades que respeitem as vontades e a necessidades dos seus habitantes. As cidades não podem ser concebidas como reinados; elas devem conceber o debate, a pluralidade e a prática cotidiana da democracia.

As práticas sociais e políticas sempre devem ser construídas com a baliza dos méritos e métodos. Democracia é poder do povo e deve ser exercida todos os dias, em todas as instâncias e respeitando todas as ideologias.



Nei Alberto Pies
Professor de rede municipal e estadual. Ativista de direitos humanos


FONTE: Adital

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...