terça-feira, 27 de março de 2018

América Latina: as faces do novo autoritarismo


Poderia ser o Rio, mas é a Cidade do México. Lá, assim como no Brasil e Argentina, avança a
"Doutrina de Segurança Urbana".


Militares voltaram às ruas no Brasil, México e Argentina. Agora, não combatem o “comunismo”, mas o “crime” e o “terror”. E não têm projeto algum: obedecem a uma elite corrupta e aos planos dos EUA



Por Isabella Gonçalves

As democracias latino-americanas vêm passado por um processo de profunda (des)configuração após mais de uma década de experimentalismo democrático, que teve seu ápice na Venezuela e na Bolívia, onde as experiências de poder popular e reinvenção do Estado construíram transformações experimentais na organização do poder político e transformações substantivas na condição de vida das pessoas.

Golpes parlamentares, reviravoltas eleitorais à direita, legislações de exceção, intervenções militares e agora uma ameaça concreta de invasão militar na Venezuela lançam sobre o continente a sombra do militarismo e do autoritarismo.

No Brasil, o governo ilegítimo de Temer decidiu romper o pacto federativo e mudar o comando da segurança pública de todo o Estado do Rio de Janeiro, colocando-o nas mãos das Forças Armadas. Desta forma, imprime no país uma condição de estado de exceção, ajuda a conter os levantes de um Estado à beira do colapso e legitima a matança irresponsável e impune dos condenados de sempre: pretos, pobres e favelados.[1]


Na Argentina, vimos nas últimas semanas o governo Macri anunciar a criação de um aparato militar composto pelo exército, marinha e aeronáutica para atuar em todo o país no combate ao “narcotráfico e o terrorismo” e a suposta ameaça do povo indígena Mapuche. A criação dessa força militar se dá em um momento de crescimento da impopularidade das medidas aplicadas ao país, como a Reforma da Previdência.

No México, o governo assassino de Enrique Peña Nieto, marcado pelo massacre de Ayotzinapa que tirou a vida de 43 estudantes, e pela violação de mais de 26 mulheres em São Salvador Atenco pelas forças policiais, promulgou uma nova Lei de Segurança Nacional. A lei regulamenta a mobilização militar contra o “crime organizado”; porém, longe de combater os cartéis do narcotráfico, aliados de seu partido — o PRI –. serve primordialmente para garantir a “paz social” e a coerção necessária para um regime de neoliberalismo extremo.

A Venezuela é um caso a parte. Diante da solidez das forças de Estado e da força popular, que foi capaz de resistir a mais de uma década de tentativas de golpe de estado e desestabilização do governo Chaves e Maduro — tentativas até agora fracassadas –, existe uma movimentação para a ocupação militar do país promovida pelos Estados Unidos e seus aliados. Panamá e a Colômbia já concentram tropas próprias e tropas gringas nas fronteiras. A intervenção norte-americana aparece de forma mais desmascarada na Venezuela, manifestada nas próprias palavras de Rex Tillerson, secretário de Estado dos EUA e historicamente ligado às petroleiras Exxon-Mobil: “El régimen de Maduro debe rendir cuentas”. Tillerson explicitamente disse que a mudança de governo poderia ser de duas formas: intervenção militar ou a derrota eleitoral de Maduro. Diante da recusa da oposição venezuelana em participar das eleições gerais em abril deste ano, parece que a está se confirmando a tentativa de executar a primeira opção.[2]

Seria exagero dizer que podemos estar diante da instauração progressiva de uma novo ciclo de ditaduras disfarçadas de democracia no continente? Um novo autoritarismo latino americano onde os mecanismos de exceção e poder militar servem para garantir um Estado que lança mão da exceção permanente quando as regras democráticas não agradam a quem de fato governa?

A cara de uma nova ditadura não é necessariamente a dos Estados militares que dominaram a América Latina durante a Guerra Fria, onde o “inimigo interno” era fundamentalmente a ameaça comunista. A doutrina da segurança nacional, largamente difundida desde a Escola das Américas no Panamá entre os anos 60 a 80, parece ser retomada e intensificada sobre novos contornos. Vale destacar que na América Latina a orientação militar de se organizar as forças armadas para combater os “inimigos internos” nunca foi desmontada e a doutrina da segurança nacional continuou a ser difundida e praticada pelos militares, em especial no Brasil  onde ocorreu transição fria e pactuada. No entanto, o “inimigo interno” que justifica a militarização da sociedade se transmutou.

O jurista argentino Raúl Zaffaroni defende que existe uma reprodução inovada no continente da Doutrina da Segurança Nacional sob a força de Doutrina da Segurança Urbana, por trás do combate ao crime organizado, terrorismo ou da chamada “guerra às drogas”.[3] Esta doutrina recria o inimigo interno sobre o significante aberto “crime organizado”, que pode enquadrar desde a “esquerda corrupta e antidemocrática”, o “narcotráfico” ou os “movimentos sociais terroristas”

Zaffaroni destaca que a construção do inimigo interno tem seu correspondente no direito penal, que sofreu um processo de configuração e homogeneização em todo continente nos últimos anos. Externamente os Estados se organizam de forma ostensiva para combater o “crime organizado” ou o “terrorismo”. Internamente, para encarcerar ou eliminar as classes perigosas, seja por efeitos de letalidade policial seja por endocídio.[4]

Segundo ele, os conceitos de terrorismo e crime organizado são tão fluidos e abertos que possibilitam o enquadramento da mais variedade gama de crimes, em geral crimes econômicos. Não combatendo aquelas formas de crime legalizados ou as grandes empresas do crime organizado que promovem transferências maciças de recursos na globalização — os paraísos fiscais por exemplo — acabam eliminando a concorrência de empresas criminais menores ou que perderam seu poder.

Vale destacar que o novo autoritarismo latino-americano surge em um contexto específico da reconfiguração do capitalismo na região. Por um lado, o aprofundamento da dependência econômica e a extrema concentração de renda: com o desmonte e privatização das estatais, as transferência de recursos via dívida externa, a deterioração das condições de trabalho e aprofundamento da superexploração. Por outro, a subordinação política ao capital transnacional e a perda de soberania dos Estados.

A perda da soberania, longe de significar o enfraquecimento dos Estados ou do poder políticok revela-se justamente o contrário. As debilidades econômicas, a característica subordinada das classes dominantes locais e as crises sociais advindas do regime de superexploração são compensadas pelas dimensões autoritárias do Estado e do governo, mesmo que sob feições democráticas.[5] O neoliberalismo longe de produzir um Estado Mínimo, cria nas periferias um regime jurídico-político marcado pelo estado de exceção permanente.[6]

O exemplo México pode nos dizer muito sobre a configuração de um novo autoritarismo latino-americano.[7] Sujeito a décadas ininterruptas de governos neoliberais, desmonte dos direitos democráticos via acordos bilaterais com os EUA, democracia minimalista circunscrita a uma breve alternância entre representantes de um ou dois partidos com a mesma política, o país organizou um poder político violento, paramilitar e contra insurgente.

O Brasil hoje também se configura como exemplo de que não há como manter o bloco golpista no poder, colocando em prática um plano de governo com esse nível de impopularidade, apenas com base no estabelecimento de consensos. É necessária a violência e a coerção. É preciso aprofundar a permanência da exceção nas nossas “democracias”. Como denunciou no Carnaval de 2018 a escola Paraíso do Tuiuti, é preciso calar a favela para perpetuar a escravidão.

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[1]Escrevi um breve ensaio sobre a intervenção para o Brasil em 5 em que relaciono a adoção de medidas de exceção progressivas pelo país com a emergência de um novo autoritarismo: https://brasilem5.org/2018/02/20/c-de-intervencao/

[2]Veja matéria sobre as declarações de Rex Tillerson em: https://es.panampost.com/orlando-avendano/2018/02/01/discurso-secretario-tillerson-sobre-venezuela-regimen-maduro-debe-rendir-cuentas/. Também podemos ver o artigo de Carlos Fazio: http://www.jornada.unam.mx/2018/02/12/opinion/021a1pol Ambos acessados em 23 de fevereiro de 2018.

[3]Zaffaroni, E. Raúl. Globalización y Crimen Organizado. I Conferência mundial de derecho penal. El derecho penal del siglo XXI. Guadalajara, 18-23 Noviembre 2007.

[4]La violencia entre personas de los mismos sectores subalternos, al tiempo que por eliminación disminuye su número39, impide el diálogo, la toma de conciencia y la coalición y, por ende, hace que se autoexcluyan de todo protagonismo político. La neutralización y autodestrucción física y cultural de los excluidos como consecuencia de la política del segurismo interno puede denominarse endocidio.

[5]Para saber mais ler Jaime Osório, 2014, O Estado no Centro da Mundialização.

[6]Valim, Rafael. Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. Jornal GNN. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/estado-de-excecao-a-forma-juridica-do-neoliberalismo-por-rafael-valim Acessado em 18 fevereiro de 2018.

[7]Jaime Osório, 2014 no livro O Estado no Centro da Mundialização faz a defesa de que México se converteu em um Estado que abriu mão da sua legitimidade, através de sucessivas fraudes eleitorais, para instaurar mecanismos profundos de militarização da vida.


quarta-feira, 14 de março de 2018

Partidos no mundo, renovações e o PSOL



Por Jorge Antunes *



Um fenômeno interessante tem sido verificado em várias partes do mundo político. Jovens lideranças abandonam partidos e agrupamentos políticos tradicionais em que militavam, para criarem seus próprios partidos.

Em Portugal está se formando o “Iniciativa Liberal”. Na Espanha surgiu o “Podemos”. Na França foram criados o “Em Marcha” e o “França Insubmissa”. Na África do Sul a novidade é o “Lutadores da Liberdade Econômica”. Na Alemanha foi criado um novo partido nazista: o “Die Rechte”, liderado pelo neofascista Christian Worch. Na Colômbia surge o “Força Alternativa Revolucionária do Comum”(FARC). Na Argentina a ex-presidenta Cristina Kirchner organiza a criação de novo partido: o “Unidade Cidadã”. O “Movimento Cinco Estrelas”, criado em 2009, na Itália, pelo humorista Beppe Grillo, já elegeu quatro prefeitos e conquistou 26% das cadeiras na câmara dos deputados e 24% das cadeiras no senado.

No Brasil, é a direita que tem se destacado, criando partidos novos. Um deles é o “Novo”. Seu fundador é o engenheiro João Dionísio Amoêdo que defende as teses da direita, incluindo o liberalismo econômico. O TSE deferiu o registro do partido em 2015. O “Novo” defende o fim das cotas nas universidades e a flexibilização para o porte de armas.

Outro partido novo, também de direita, deverá já estar deferido pelo TSE em outubro: o “Partido da Igualdade”. Liderado pelo goiano Claudio Martins de Lisboa, esse partido combate a legalização do aborto e as drogas.

Mais de 50 outros partidos estão em formação, aguardando julgamento do TSE. Alguns deles: Partido Liberal (PL), Partido Muda Brasil (PMB), Nova Ordem Social (NOS) e Unidade Popular pelo Socialismo.

O desgaste dos partidos políticos está dando lugar à esperteza das velhas raposas, para ludibriar o eleitorado com a mera e simples mudança de nomes das agremiações. O PTdoB mudou o nome para “Avante”, o PTN agora se chama “Podemos”, o PSDC virou “Democracia Cristã” e o PMDB, agora, é MDB.

Podemos

Em 2014 foi criado, na Espanha, um novo partido de esquerda: o “Podemos”. Sua origem foi um manifesto, intitulado “Mover ficha: convertir la indignación en cambio político”, que foi publicado nas redes sociais num final de semana de janeiro de 2014. O manifesto trazia cerca de 30 signatários, entre os quais estavam personalidades da área cultural, escritores, filósofos e professores universitários.

O manifesto clamava a necessidade de se construir uma candidatura que concorresse às eleições europeias de maio de 2014, para se opor às políticas da União Europeia voltadas à crise econômica. O novo partido conquistou rapidamente milhares de seguidores e apoiadores. Foi indicado, como candidato, o analista político Pablo Iglesias, professor da Universidade Complutense de Madrid.

A participação do novo partido nas eleições europeias de 2014 teve sucesso, com a obtenção de cinco cadeiras, com 8% dos votos. Em poucos dias o Podemos superou os partidos tradicionais tais como o PSOE de centro-esquerda e o PP de direita.

Em Marcha

Em 2012 o presidente socialista da França, François Hollande, nomeou o jovem banqueiro Emmanuel Macron como secretário-adjunto da Presidência da República. Em 2014 Macron passou a ser Ministro da Economia. Em 2016 ele saiu do governo, para fundar seu próprio partido, o “La République en Marche” e lançou-se candidato à Presidência.

Na sua campanha de candidato, Emmanuel Macron logo conquistou enorme número de apoiadores e formulou os princípios que o norteariam: probidade, paridade, renovação, pluralismo político, coerência e mais mulheres na política. Macron foi eleito e é, hoje, o presidente da França. O En Marche se revela um partido de centro, social-liberal, que adota o liberalismo econômico e social.

A França Insubmissa

Em 2016, também na França, Jean-Luc Mélenchon fundou um novo partido de esquerda: La France Insoumise (França Insubmissa). A pretensão de Mélenchon era ser eleito presidente da República em 2017. O novo partido não conseguiu fazer acordo com o Partido Comunista Francês e, assim, não houve aliança.

O partido La France Insoumise se reivindica socialista, comunista, ecossocialista, marxista, anticapitalista e defende um populismo e um nacionalismo de esquerda.

Atualmente o partido conta com 17 deputados na Assembleia Nacional e um deputado no Parlamento Europeu.

Lutadores da Liberdade Econômica

Em julho de 2013 o líder sul-africano Julius Malema, então com 31 anos de idade, foi expulso da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano, agremiação da qual tinha sido presidente. Logo em seguida, Malema criou um novo partido: o Economic Freedom Fighters (Lutadores da Liberdade Econômica). Atualmente o EFF é o terceiro maior partido da África do Sul. Em 2014 o partido de Malema recebeu mais de um milhão de votos.

Malema e seu partido têm ideologia comunista, pan-africana, marxista-leninista, anti-imperialista e anticapitalista. Sua plataforma é bastante arrojada, defendendo a expropriação de terras da África do Sul sem indenização, a nacionalização de minas e bancos, desenvolvimento industrial, educação, saúde e moradia de qualidade e gratuita. Em uma de suas manifestações recentes, Julius Malema disse que 2018 vai ficar na história como o ano em que os negros voltaram à política.

Recentemente o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, acusado de corrupção, renunciou. Em seu lugar assumiu o vice Cyril Ramaphosa, eleito pelo Parlamento. Mas sua eleição não agradou a Julius Malema e a seu partido Lutadores da Liberdade Econômica. A bancada abandonou o Parlamento, acusando a eleição de ilegítima, defendendo a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições. Novas eleições presidenciais serão realizadas em 2019.

Psol

Pelos relatos acima, em que resumimos a história de novos partidos surgidos neste início do século XXI, observamos a coincidência do fenômeno: um jovem político resolve criar um partido novo “para chamar de seu”, e se dá bem. Tudo dá certo, o partido cresce e ganha o poder das massas.

No Brasil aconteceu algo parecido, agora, com pequena diferença. O Psol convidou um jovem político, não filiado ao partido, para ser candidato à presidência da República, e o jovem político aceitou. O Psol ofereceu, ao jovem político recém-filiado, um partido “para chamar de dele”.

Isso vai dar certo? Sim, claro, vai dar certo provisoriamente. Juntaram-se a fome e a vontade de comer. Nenhuma das figuras públicas do partido queria se desgastar, aceitando a missão inglória de se candidatar à presidência da República, sabendo antecipadamente da derrota. Colocar um dos atuais vereadores ou deputados do partido nessa aventura, seria condená-lo à não reeleição para o mandato de parlamentar. Essa justificativa fica escondida nas recônditas conjecturas, porque outra maior justificativa se apresenta: o partido precisa manter ou aumentar sua bancada, para não ser penalizado pela “cláusula de barreira”. Pouco importa, no momento, se a base do Psol se divide. Vale o sacrifício. Logo logo tudo se ajeita. Alguns militantes gritam, esperneiam, abandonam o partido, mas em poucos meses tudo se recompõe.

Da parte do jovem político, tudo é também satisfatório. Com os dois ou três por cento que ele receberá nas urnas, em outubro deste ano, ele se cacifará para seguir os passos de Macron, Malema, Iglesias e Mélenchon. Tomo a liberdade futuróloga para vaticinar: em 2020 ou 2021 ele abandonará o Psol, para fundar um partido novo “para chamar de seu”. Esse partido novo poderá receber o nome de “Vamos”. Ou, então, poderá também receber um nome mais contestador, como, por exemplo, “Movimento dos Trabalhadores Sem Teto”. Mas, para isso, será preciso que a desgraça brasileira continue a existir por mais dois ou três anos, e que todos os sem-teto continuem sem-teto por mais tempo, e que cresça ainda mais a quantidade de sem-teto. Caso contrário o novo partido não terá seguidores.



* Jorge Antunes é Doutor em Esthetique Musicale – Universite de Paris 8; é presidente da Sociedade Brasileira de Música Eletroacustica; professor titular aposentado da Universidade de Brasília; Pesquisador Colaborador Sênior da Universidade de Brasília e Membro da Academia Brasileira de Música.



domingo, 4 de março de 2018

Crise Silenciosa Da Educação






Por Gabriel Grabowski     


De modo progressivo e muito preocupante, o Estado começou a se desonerar de encargos econômicos nas áreas da educação e da pesquisa básica.

Recentemente, a filósofa americana Martha Nussbaum, em sua obra Sem fins lucrativos, fez uma constatação e um alerta preocupante: “estamos em meio a uma crise de enormes proporções e de grave significado global. Não, não me refiro à crise econômica global de 2008… Refiro-me a uma crise, que, como o câncer, passa em grande parte despercebida: uma crise mundial da educação. Uma crise silenciosa, indolor, imperceptível num primeiro momento, como o câncer, que a maioria de nós não está diagnosticando. Nussbaum afirma que estão ocorrendo transformações radicais no que as sociedades democráticas ensinam a seus jovens e tais mudanças não têm sido bem pensadas, nem analisadas, e pouco debatidas. Obcecados pelo Produto Nacional Bruto (PNB), a maioria dos países e de seus sistemas de educação está descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia. Persistindo essa tendência, brevemente, os países estarão produzindo gerações de máquinas produtivas, em vez de produzirem cidadãos íntegros.

Quase a maioria dos países europeus, bem como as universidades americanas, segundo o filósofo italiano Nuccio Ordine, estão orientadas para a redução dos níveis de dificuldades a fim de permitir que os estudantes passem nos exames com maior facilidade. “Parece que ninguém se preocupa, como deveria, com a qualidade da pesquisa e do ensino. Estudar e preparar as aulas já se tornou um luxo que é preciso negociar todos os dias com a hierarquia universitária ou na gestão escolar”, complementa.

Tanto Martha Nussbaum (Universidade de Chicago), quanto Nuccio Ordine (Universidade da Calábria) não colocam em dúvida a importância da preparação profissional nos objetivos das escolas e das universidades, mas destacam que a função da educação não pode ser reduzida à formação profissional de médicos, engenheiros, advogados, tecnólogos e demais profissionais, imprescindíveis para o desenvolvimento das nações. Eles alertam que privilegiar, exclusivamente, a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação: nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os estudantes a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiosidade e criatividade.

De modo progressivo e muito preocupante, o Estado começou a se desonerar de encargos econômicos nas áreas da educação e da pesquisa básica. Este processo de decadência do mundo universitário, a exemplo de algumas universidades canadenses, bem como brasileiras, americanas e inglesas, tem transformado os estudantes em clientes. “E o que fazem os clientes? Compram diplomas”, afirma Nuccio Ordine. Isso é um erro terrível.

Já as instituições de ensino estão sendo transformadas em empresas, produtoras de diplomados e titulados para inseri-los no mundo do mercado. Também os professores estão transformando-se cada vez mais em simples burocratas à serviço da gestão comercial das empresas universitárias, passando dias a preencher formulários e produzir relatórios. No Brasil, com a expansão da Educação à Distância, até as aulas estão preparadas, programadas, homogeneizadas e, qualquer um, pode substituir o colega e aplicar o conteúdo aos jovens clientes.

Este foco míope nas competências lucrativas corrói nossa capacidade de criticar a autoridade, reduz nossa simpatia pelos marginalizados e pelos diferentes de nós e prejudica nossa competência para lidar com problemas globais complexos. Por esta linha de raciocínio que a filósofa americana defende conectar a educação às humanidades.

Para Ordine, hoje assistimos a uma ditadura do mercado. “Em qualquer âmbito, em qualquer situação, em qualquer momento de nossa vida é preciso levar sempre em consideração a que serve, quanto se ganha, qual é o proveito disto. Penso que está lógica destruirá a humanidade”. Com tal perspectiva, damos aos jovens outras indicações. Dizemos: “Pense no seu egoísmo. Pense em fazer dinheiro. Matricule-se na universidade não para aprender, mas para apresentar um diploma ao mercado. Escolha a faculdade que vai lhe fazer ganhar dinheiro”. É assim que estamos corrompendo nossos jovens.

Nossas escolas precisam ter mais consciência do mundo em que nossos alunos vão viver. O pragmatismo e utilitarismo, tanto do mercado, como da educação para a economia, estão produzindo uma sociedade moderna que, segundo o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett, desabilita as pessoas na condução da vida cotidiana. Dispomos de muito mais máquinas do que nossos antepassados, mas de menos ideias sobre a melhor maneira de usá-las; temos mais canais entre as pessoas, graças às modernas formas de comunicação, mas menor compreensão sobre como nos comunicar bem. A destreza prática é uma ferramenta, e não uma salvação, a ela as questões de Significado e Valor não passam de abstrações.

O problema central hoje, para professor português António Nóvoa, é reequilibrar as missões universitárias, entre as funções econômicas e as funções sociais e culturais. Em vez da empregabilidade, é preciso compreender o sentido de uma formação universitária que vá para além de um ciclo inicial de estudos e que forneça as bases para percursos de vida, que integram a relação com o trabalho, mas que não se esgotem nesta dimensão. Em vez da eficiência, no seu sentido mais limitado, é preciso repensar o todo universitário, conseguindo que não se perca o sentido de universalidade e tudo o que nele protege uma vida acadêmica que tem de prestar contas, mas não o deve fazer unicamente com base no seu “valor económico imediato”; e, em vez da inovação como simples prolongamento tecnológico, é preciso que a universidade se constitua como um ambiente aberto e estimulante, criativo, capaz de promover nos estudantes uma cultura de descoberta e de responsabilidade, que se projete numa nova relação com a sociedade.

A educação deve ser concebida não somente como fornecedora de competências e habilidades técnicas úteis, mas, principalmente, como um meio de enriquecimento geral da pessoa através da informação, do pensamento crítico, da imaginação e do conhecimento científico para uma vida com sabedoria. Os tempos atuais requerem que a educação escolar cumpra sua missão de educar os humanos – através de uma formação integral –, para viverem juntos neste mundo, acolhendo os diferentes, promovendo espaços comuns de aprendizagem, consolidando uma cidadania global, com democracia e liberdade.

Enquanto estas ideias e reflexões ganham força e credibilidade em muitos países, transformando-se em políticas públicas de Estado, o governo vigente do Brasil, assume a perspectiva neoliberal e subordina a educação à lógica do desenvolvimento econômico, do mercado e do ajuste fiscal. A indução a profissionalização precoce com o “novo ensino médio”, a expansão dos cursos superiores de tecnologia de curta duração, a ampliação da oferta na modalidade de educação à distância e uma Base Nacional Comum Curricular baseadas nas competências e habilidades escancara a opção oficial do MEC.



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...